Thaís Nicoleti

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O português dos robôs

Liberal na gramática e conservador no estilo, aplicativo de escrita tem limites

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Não faz muito tempo que se usava o termo robô como metáfora para descrever um indivíduo totalmente condicionado, incapaz de fazer uso do livre arbítrio, metódico em demasia e desprovido de criatividade. A palavra, que tomamos emprestada do francês "robot", foi criada em tcheco a partir do termo "robota", que significa "trabalho forçado". Sua primeira aparição deu-se em 1920, na peça teatral R.U.R. ("Rosumovi Univerzální Roboti"), do escritor Karel Čapek.

De lá para cá, os robôs continuaram sendo personagens de obras de ficção científica, nas quais, em geral, ameaçam, de alguma forma, o ser humano. Hoje, no entanto, saltaram da fantasia para a realidade e se tornaram nossos assistentes em uma boa quantidade de aplicativos. Uns se saem bem, outros nem tanto, mas eles estão por aí, em toda parte, substituindo os humanos nas tarefas repetitivas.

Graças à inteligência artificial, os robôs se tornaram assistentes de humanos também na tarefa de escrever. Podem fazer correção gramatical e de estilo, traduzir textos, parafrasear artigos alheios e até mesmo produzir uma redação sob encomenda. O sucesso da ferramenta já se traduz em números: segundo o articulista Ronaldo Lemos, "hoje, 47,4% de todo o tráfego na rede é gerado por robôs", que falam entre si.

imagem virtual de homem negro idoso de terno e pince-nez segura um livro
A representação virtual de Machado de Assis apresentada em totem na ABL (Academia Brasileira de Letras); avatar é capaz de interagir com o público graças à inteligência artificial - Divulgação


De fato, é espantosa a capacidade desses sistemas de rastrear, em segundos, grande número de textos sobre um assunto e de rearranjar as informações. Antes, porém, de copiar o texto produzido pelo aplicativo e de chamá-lo de seu, o usuário deveria fazer uma reflexão. É, mais uma vez, Ronaldo Lemos, quem, em outro artigo, nos lembra de que a "IA é só um software, portanto controlada por alguém".

Ao delegarmos a um software tarefas como corrigir, parafrasear ou mesmo escrever, transferimos a ele o poder de decidir como escrevemos e o que escrevemos. O software, no caso, são as pessoas que criaram as regras para que ele funcionasse.

Enquanto acompanhava, a distância, um debate entre linguistas e gramáticos sobre a escolha do cânone do qual se extraem as regras gramaticais adotadas como norma culta, apareceu na tela do meu celular um anúncio de um desses aplicativos de correção e produção de textos. A discussão seguia acalorada: linguistas defendiam o uso dos textos de teor informativo (da imprensa e da produção acadêmica) como o modelo das regras; gramáticos defendiam o uso da literatura como referência. Entre uns e outros, que pensará a inteligência artificial acerca disso?

Não, não ousei perguntar a opinião do aplicativo sobre o tema nem pedir que elaborasse um texto sobre tão espinhosa questão. Mais fácil seria "testar" algumas palavras e construções para verificar como ele resolve (ou não) os problemas, o que diz algo sobre os parâmetros adotados.

No quesito ortografia, aparentemente o mais simples, dado que bastaria inserir no software a plataforma de verbetes de um bom dicionário ou a do "Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa", o aplicativo mostrou ignorar esse tipo de referência. Aceita indistintamente as grafias "femoral" (correta) e "femural" (incorreta), assim como "despender" (correta) e "dispender" (incorreta), por exemplo.

No buscador da Folha, tínhamos (até o momento em que este texto era escrito) 157 ocorrências de "femoral" e 103 de "femural". Embora o número de grafias corretas do termo seja maior que o de grafias incorretas, a diferença não é tão significativa. Imaginemos que se reproduzisse essa pesquisa nos outros veículos de imprensa e na própria internet como um todo. O aplicativo simplesmente aceita as duas formas.

Em uma construção como "Agradeço-o por ter vindo", frustrou-se minha expectativa de ver corrigido o emprego do pronome "o", que está no lugar de "lhe". Ao mesmo tempo, porém, o sistema sugeriu a substituição de "ter vindo" por uma "forma mais simples", ou seja, "vir". "Nunca o permiti me chamar de você" também é considerada construção correta, mesmo estando o pronome "o" no lugar de "lhe" mais uma vez. Construções do tipo "Teria a aceitado" ou "Se chama de amigo" são plenamente aceitas, mas "Teria-o aceitado" não passa pelo crivo. Agora, o aplicativo pede a mesóclise ("Tê-lo-ia"). O usuário que seguir à risca as orientações poderá usar a mesóclise na primeira frase do texto e, na segunda, o pronome átono em posição inicial, ou seja, dois cânones.

Na correção de gramática e estilo, inseri no aplicativo um comentário feito por leitor a um texto: o aplicativo considerou "junto com" um pleonasmo (Celso Luft, em seu conhecido "Dicionário de Regência Nominal" não abonaria essa observação) e "sem pés nem cabeça" uma "frase feita", o que foi apontado como defeito a corrigir. No programa de reescrita em tom formal, a sequência "Quer chamar a atenção à minha custa" vira "Deseja se destacar a meu favor". Falantes do português sabem que "à custa de" não quer dizer "a favor de".

Os poucos exemplos sinalizam que o cânone da inteligência artificial, pelo menos o usado por esse aplicativo, não apresenta critérios claros. Aparentemente, reproduz os usos comuns, com toda a sua variação, desconsiderando boa parte das regras gramaticais, mas as recomendações de estilo parecem ancoradas em algum critério antigo. Em suma, o aplicativo é liberal na gramática e conservador no estilo.

Como se baseia no que já foi escrito, a inteligência artificial tende a inspirar-se no material que ela mesma produz. Assim, o cânone vai sendo definido, na prática, por esses sistemas e seus critérios, que não sabemos exatamente quais são. O conteúdo usado como base para a produção de novos textos também pode estar sujeito a algum tipo de filtro, que não sabemos qual é.

A inteligência artificial pode ser útil para quem escreve, mas é preciso que se delegue aos robôs apenas o trabalho pesado. A produção de ideias novas, a originalidade da exposição e, em certa medida, até a correção gramatical ainda são tarefas puramente humanas.

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