Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

Antietanol e a pressão que impede o alcoólatra de evitar a bebida

Não é uma simples queixa: deixem as pessoas em paz; se alguém não bebe, não interessa o motivo

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Senti um calor se espalhar pelo corpo e imediatamente meu amigo perguntou: "Ei, o que está acontecendo? Seu rosto está muito vermelho, tá tudo bem?". Não, não estava nada bem. Eu tinha tomado um comprimido de antietanol antes de sair e não aguentei ficar sem beber na casa do Tomás, que foi quem reparou na vermelhidão.

Explico: antietanol é um comprimido que te impede de beber. Ele inviabiliza a digestão do álcool, por isso é perigosíssimo beber se ele está no organismo. É um colete à prova de bala que impossibilita a ingestão de álcool. Mas como, perto do álcool, eu não tinha medo nem da morte, não titubeei em fazer uso da bebida mesmo com o remédio na minha corrente sanguínea. A consequência imediata é vermelhidão, falta de ar e taquicardia. Ou seja, é como sangue na água cristalina: não tem como não reparar que alguma coisa está muito errada.

Claro que foi uma péssima ideia, mas aí preciso dizer que não era uma vontade, era uma necessidade. Quando cheguei ao jantar vestida com as armas poderosas contra o álcool, eu estava, sim, receosa. Precisava beber, não podia deixar de beber. Justo ali naquela casa, onde eu era sempre a primeira a chegar (já com umas na cabeça) e sempre a mais extrovertida. Como ficar sem pelo menos um golinho e fingir que estava tudo normal? Digo isso porque não era normal não beber, não era possível não beber e não tinha a menor chance de eu vislumbrar uma vida sem o álcool.

'Já repararam que, quando você não está bebendo, as pessoas te cercam de perguntas?' - Reinaldo Canato/Folhapress

Evitei por duas vezes quando me ofereceram bebida. O Tomás e seus amigos são pessoas divertidas, descontraídas e sempre se reúnem para tomar uma breja. Faz parte do ritual da turma. Breja e música boa. "Era só colar." Pensando com minha cabeça de hoje, o certo mesmo seria não ir à casa dele, já que eu sabia tudo que ia rolar.

Já repararam que, quando você não está bebendo, as pessoas te cercam de perguntas? Você não bebe? Por quê? O que aconteceu? Promessa? Remédio? Chaaaaaato. Nos meus primeiros meses de recuperação, eu sempre dizia que estava tomando antibiótico. Falava isso e o assunto morria. Até que um dia um amigo MÉDICO me disse: Mas tudo bem beber tomando antibiótico! Pronto, lá se foi minha ótima desculpa.

Faço um parêntese: se perguntar a uma pessoa se ela quer beber alguma coisa e ela disser não, não fique assuntando por que não. Putz, como isso irrita. A última vez que recusei uma bebida num jantar, um colega de trabalho me disse: "Eu não confio em quem não bebe". JUUUURA mesmo? Nesses momentos eu fico fora de mim, tenho vontade de começar uma palestrinha sobre a inadequação a respeito da questão do álcool.

Essa pressão, digo por mim, é uma das razões que me impediam de não evitar o álcool. Parece que você é menor, mais fraco, mais chato. Claro que essa é uma visão de alcoólatra em recuperação que sempre frequentou lugares regados a álcool e sempre achou que tooooodo mundo bebia. Então para mim mesma já foi por muuuuito tempo uma questão "não beber" pros outros. Antes de entrar no AA, tentei muitas vezes parar de beber, mas sempre voltava numa situação que não daria para "brindar com água".

Estou parecendo uma menina reclamona, botando a culpa nos outros? Garanto que não é uma simples queixa. É uma sugestão para que deixem os alcoólatras em paz. Deixem as pessoas em paz. Se alguém não bebe, não interessa o motivo.

Recentemente estava com um dos meus grandes amigos e primeiro padrinho de AA e lembrei de um dia em que, depois do trabalho, uma colega me convidou para esticar a noite. Agradeci e disse: Não, estou cansada e vou dormir. Imediatamente ela fez aquela cara de espanto e emendou: Ahhhh, você não sabe o que vai perder! Relembrando isso com meu padrinho, ele me disse que o melhor seria eu ter respondido: Acho que você que vai se arrepender se eu for. Caímos na gargalhada. (Hoje eu consigo rir.)

Claro que é gostoso beber, ninguém fica viciado em jiló. O álcool sempre foi vendido como um estímulo fascinante. Numa propaganda de bebida tem sempre uma pessoa bonita, uma galera reunida e feliz. Ou você já viu o protagonista debruçado sobre o balcão do bar, chorando?

Triste é pensar nos milhares de portadores da doença do alcoolismo que se sentem menores, perdedores quando a felicidade está associada à bebida. Meu lema de vida é mostrar, seja aqui no blog, seja no meu dia a dia, que viver sem o álcool me faz mais bonita e me proporciona uma vida de verdade e feliz. Muito feliz.

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