Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

Para conseguir beber, mentia para amigos, familiares e médicos

É necessário pôr tudo o que fiz para fora, pois não era maldade, era doença; eu não era doida, era doente

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O alcoolismo é progressivo. Nos últimos anos em que bebi, o ritmo era totalmente descontrolado. Não tinha hora, não tinha lugar, não tinha data. E conciliar a bebida com todos os compromissos sociais –trabalho, amizade, lazer, saúde, família– é praticamente impossível.

O álcool vai se tornando a coisa mais importante do dia, da hora, do segundo. Não importa o que esteja acontecendo, sempre tem que ter uma reserva de álcool por perto. Quando ia trabalhar, levava bebida na bolsa. Se tinha reuniões intermináveis, misturava uma bebida numa caneca bem cheia de chá para aguentar. No final, eu fazia tudo para não perder o meu álcool.

Isso significa que, muitas vezes, como o chá que não era chá, eu tinha que mentir. Precisava justificar por que ia tantas vezes ao banheiro, por que esquecia os compromissos… Era uma bola de neve: eu ia bebendo e mentindo, esquecendo os compromissos e mentindo, pedindo desculpas e mentindo, vivendo e mentindo. Eu mentia tanto que muitas vezes fazia força para acreditar que as minhas mentiras eram de fato verdadeiras. INSANIDADE PURA.

Vida de Alcoólatra
'Mentir dói, e desfazer mentiras muitas vezes exige outra mentira. É ladeira abaixo' - Catarina Pignato

Lembro de uma vez que peguei um táxi e eram dez da manhã. Não aguentei ficar sóbria durante o trajeto e então saquei a bebida da bolsa e me pus a beber ali mesmo. Ao mesmo tempo que fazia isso, comecei a chorar e dizer ao motorista que eu tinha perdido um parente. Mas para quê?? Para justificar o porquê de eu estar bebendo naquela hora.

Depois de fingir estar passando por uma péssima situação, as pessoas ao redor entendiam por que eu estava bebendo. Ou pelo menos não achavam muito estranho. A mentira me deixava livre para beber a qualquer hora, em qualquer lugar.

Mentia para amigos, mentia para familiares, mentia para as pessoas que mais me amavam. Cheguei a matar algumas delas para justificar a tristeza, cheguei a ter doenças que não tive. Como dói escrever e lembrar disso. Mas a vontade de enfiar uma bebida na boca era tanta que eu me convencia de que era uma péssima pessoa por estar fazendo aquilo. NÃO! Era uma questão de sobrevivência, de tentar aliviar a dor do alcoolismo.

Eu mentia para beber e para me acalmar. Quanto mais bebia, menos efeito calmante tinha o álcool e então tinha que beber mais. Daí, quanto mais bebia em lugares inapropriados, mais eu mentia. Fui vivendo uma vida paralela. Mentia meu nome, mentia para roubar bebida, mentia minha nacionalidade, mentia para beber na frente da minha família que estava na vigia, mentia para médicos, mentia, mentia, mentia!

E dói, mentir dói. "São espinhos que SÓ causam dor", como diz a música "Os Cegos do Castelo", de Nando Reis. Mesmo porque desfazer mentiras muitas vezes exige outra mentira, e aí é ladeira abaixo. Quando percebia, tinha matado meu avô, tinha inventado uma cirurgia… Lembro que cheguei a botar pimenta na privada para provar que eu estava com uma grave infecção urinária. E eu era desmascarada, óbvio. E daí ficava com raiva de quem me apontava o dedo. Putz, isso rendeu muuuuitas conversas no começo de minha recuperação, e ainda hoje sinto extrema necessidade de relembrar. Mesmo que num espelho retrovisor essa imagem já esteja bem distante.

É necessário pôr pra fora tudo que fiz. Falar dessas histórias numa sala de Alcoólicos Anônimos me fez sair da solidão do medo, da culpa, do ódio de ter feito tão mal a tanta gente. E perceber que não sou a única que fez o que fez. Não era maldade, era doença; eu não era vagabunda, era doente. Não era doida, era doente! Se você lê e entende, é porque sabe exatamente o que é ter problema com álcool. Se você não entende, pelo menos te peço para acolher esse pensamento em relação a uma doente alcoólatra.

Falar todos os dias "sou Alice, uma alcoólatra em recuperação" tem muito a ver com tudo isso. O alcoolismo não é só a bebida. Parei de beber, logo me curei. NÃO!! Parar de beber foi só o começo para uma vida de mudança diária.

Hoje eu não minto, ou se por alguma razão preciso falar uma mentirinha social, fico muito mal porque ela me remete ao tempo de alcoolismo ativo. Meu cérebro entra na sintonia daquela época e parece que estou prestes a beber, mesmo sem nenhuma vontade nem necessidade. É louco, dá um medo danado de estar perto de voltar àquele inferno. Mas com o tempo vou aprendendo que se me cuidar todos os dias, consigo não me levar tão a sério e não exigir de mim a perfeição, como o AA me ensinou.

E agora, só agora, percebo que posso cuidar de outros que estão ao meu redor. Assim encho o peito para cantarolar:

"Se você puder me olhar,
Se você quiser me achar.
E se você trouxer o seu lar…
Eu vou cuidar...
Eu cuidarei do seu jantar.
Do céu e do mar.
E de você e de mim. "

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