Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu casamento

Minha melhor amiga de infância se casou e eu não fui convidada

A vida em recuperação do alcoolismo é uma aceitação diária; assim como perdi Ana, ganhei Gabi

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Chorei muito no dia do casamento da Ana. A cerimônia ia ser à tarde e o sábado prometia: o tempo estava lindo, ideal para se programar uma festa. Naquela manhã, antes mesmo de saber que Ana iria casar, eu levantei disposta a levar meu cachorro para passear. Ele já tinha destruído a sandália que me restava e esperava ansioso por uma volta no quarteirão. Com a guia em uma mão e o celular na outra, saí. Morava ao lado de uma pracinha, parecia uma cidade de interior. Mudei de casa muitas vezes no alcoolismo ativo. Em sete anos foram nove endereços diferentes.

No meio da caminhada recebi uma mensagem que acabou com qualquer possível tranquilidade que eu estivesse experimentando. Minhas amigas estavam se arrumando para o casamento da Ana e uma delas deixou escapar isso no grupo de WhatsApp. Casamento da Ana??? Voltei correndo para casa, comecei a sentir um calor, um enjoo absurdo. Me atirei no sofá. Olhei a mensagem de novo. Era verdade. Ana, minha melhor amiga da infância, adolescência e parte da vida adulta, ia casar e não tinha me convidado para a cerimônia. O choro chegou violento. Corri para a geladeira vazia e peguei a garrafa de vinho que estava lá, triste e solitária. Entornei. Ana e eu havíamos sido inseparáveis, mas estávamos afastadas já fazia um tempo. Como eu não ia participar de um dos momentos mais importantes da vida dela?

'Não consigo mais' foram as últimas palavras que ela me disse antes de nos afastarmos - Catarina Pignato

Ana tinha cansado da minha amizade pesada. "Não consigo mais", foram as últimas palavras que ela me disse antes de nos afastarmos. Até então nos falávamos todo dia, éramos cúmplices e inseparáveis. Ela me ajudou inúmeras vezes quando eu me metia em encrenca. Parava o que estava fazendo e ia me encontrar, me dando suporte, calma e esperança. Com ela passei um tempo num sítio próximo da capital que prometia uma energização, uma limpeza anímica... Também foi ela que me indicou os melhores médicos e investiu afetivamente no meu tratamento. Até que não segurou mais. Foi a primeira grande amiga que perdi para o álcool. E foi isso, um rompimento. Agora, sempre que nos encontramos, nunca mais nos falamos como as best friends que éramos.

Até hoje sinto falta dela e sonho com nossa amizade, nossa intimidade. Que hoje só sobrevive em sonhos e pensamentos mesmo. Na vida real, Ana desapareceu, fez o que disse que faria: rompeu comigo.

O primeiro grande passo na recuperação é a aceitação. Aceitar não só que eu não podia mais beber, mas aceitar as situações que não dependiam mais de mim. Aceitar o que não posso mais modificar, como repito todo dia na oração da serenidade. A dor de perder uma amiga que continua viva é horrível, e por muito tempo eu não aceitei. Mas sentia uma impotência sem igual.

Tentei falar com ela, tentei convencer amigas a falar em meu nome, tentei pedir ajuda aos pais dela, que sempre foram muito meus amigos. Tudo em vão. Foi e é difícil entender como uma amizade acaba. Um amor, eu (até) entendia, mas uma amizade? Como assim ela não conseguia mais ser minha amiga? Que tipo de sentimento ela havia tido por mim? E todos os anos que passamos juntas, rindo, sendo cúmplices uma da outra? Para onde foi o amor eterno que juramos uma à outra tantas vezes?

Ana era a amiga que sabia absolutamente tudo da minha vida e por conta disso, de ser muito próxima, as pessoas a procuravam quando viam que minha situação estava insuportável. Disse aqui em outro texto que no trabalho bebia muitos chás que não eram chás. Uma colega era amiga da Ana e a procurou quando viu o que eu estava aprontando naquele escritório. Fui afastada e Ana me levou para trabalhar com ela. Queria que eu ficasse bem a todo custo. Pois bem, e agora que eu estou bem, CADÊ A ANAAAAA?

Ana casou, teve uma filha e lá se vão dez anos sem sua companhia. Tudo mudou na minha vida e ela não fez parte da minha mudança. Nem eu da dela. Fiquei com raiva, senti tristeza, meio que não me conformava. Hoje não são tão fortes esses sentimentos, mas continuam existindo. Estão aqui. Ainda sonho com a Ana, ainda penso na vida que ela tem, ainda queria fazer parte do grupo de suas grandes amigas.

Reunião de um grupo do Alcoólicos Anônimos no bairro Vila Dalila, zona norte de São Paulo - Jardiel Carvalho/Folhapress

Às vezes nos vemos em alguma reunião de amigos em comum. Fico mal, fico sem jeito. A amizade de fato acabou. Nesses tempos de AA, fiz duas tentativas de me aproximar para quem sabe recomeçar alguma coisa, mas a porta estava fechada. Ela nunca foi grossa, mas tampouco foi receptiva. Da última vez, ela disse: "Podemos tomar um café, claro. Só queria que você entendesse que não consigo mais te ver como amiga". Não preciso dizer que chorei baldes, sofri horrores. Mas é isso. A vida em recuperação é uma aceitação diária. Assim como perdi Ana, ganhei tantas outras. A Gabi, por exemplo.

Gabi acompanha meu blog com um entusiasmo de encher o olho de lágrima. Não perde uma terça-feira. Desde a primeira vez que nos vimos (eu já em sobriedade), ela me ensina. É uma amizade madura, que compartilha reflexões, cicatrizes e dores, mas também muitas alegrias e cumplicidades.

Se você também perdeu uma Ana (não é nem um pouco difícil perder pessoas para o alcoolismo), tente ser gentil consigo e com a amizade perdida, procure Gabis pelo mundo. Perdoe-se assim como eu venho fazendo comigo. Tem coisas que não voltam mais, elas ressignificam.

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