Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

A tarde em que eu trabalhei, pela primeira vez, levemente embriagada

Hoje vejo o quão perigoso era o modo como eu me relacionava com o álcool

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Lembro da primeira vez que bebi no trabalho. Era um dia comum. Eu estava em meu terceiro emprego com carteira assinada e ainda achava aquele mundo muito adulto para mim. Tinha uns vinte e poucos anos. O trabalho era legal, mas eu não conseguia de jeito nenhum me sentir incluída entre as pessoas. Tinha vergonha de TU-DO —uma sensação incompatível com o cargo que eu ocupava. Precisava ser extrovertida, falar com as pessoas (o que sempre tinha sido um problema), senão não poderia ficar no emprego. Enfim, seria mais um dia em que me sentiria um peixe fora d'agua (sensação que me acompanhava desde criança).

Passei a manhã me esforçando para sair do meu silêncio, uma tormenta. Às onze e quarenta, a Marília me escreveu no ICQ perguntando se eu não queria almoçar com ela. Uau, aquela mensagem foi um alívio gigantesco. Claro que queria sair daquele ambiente e não precisar passar o almoço com pessoas com as quais não me sentia nem um pouco confortável. Marília era desbocada, me chamava de Alicinha e era uma delícia estar com ela. Não hesitei e fui ao seu encontro. Trabalhávamos perto e poderíamos fofocar sobre nossos descasos amorosos. Minha vida afetiva da época era zero na realidade, mas a mil na minha cabeça, o que muitas vezes era um problema: imaginar um mundo e viver em outro (percebo hoje o quão perigosa é essa dinâmica para mim).

Nem tinha virado a esquina e Marília veio correndo me dar um abraço fooooorrrrte. Ela era um pouco mais alta que eu e um pouco mais velha também, o que me dava uma sensação boa de segurança. "Meu amor, vamos tomar uma cerveja hoje? Não estou com fome." Ahhhhhh, o abraço somado àquela ideia foi como encontrar uma boia depois de fortes braçadas em um mar turbulento. De estômago vazio, a bebida desceu ainda melhor, me acalmou e intensificou o prazer daquele encontro.

Pessoas segurando copos de cerveja e curtindo o verão ao ar livre.
Hoje em recuperação, fico lembrando desses primeiros encontros com a bebida em lugares inapropriados - Astrosystem/Adobe Stock

Contei para a minha amiga o quão chato estava sendo o dia e ela falou: afeee, o meu também, que bom é estar aqui. Demos risada. Uma cerveja era pouco e nosso ticket refeição ainda tinha espaço para mais algumas. Ah, tinha isso, aquele restaurante aceitava que se pagasse bebida com TR. Tudo me parecia o máximo. Bebemos mais algumas garrafas e voltamos para o trabalho. O alimento que eu precisava. Voltei contente, sorrindo, fui direto para a minha mesa com uma sensação maravilhosa. Todo tormento da manhã foi imediatamente transformado em uma alegre tarde. O trabalho fluiu, tudo parecia tão mais fácil e tão mais leve que aquele dia ficou marcado. A tarde que trabalhei levemente embriagada. Que ideia genial tivemos Marília e eu.

Hoje, em recuperação, fico lembrando desses primeiros encontros com a bebida em lugares inapropriados. É claro que o episódio já mostra quão perigoso era o modo como eu me relacionava com a bebida. Na verdade, em retrospectiva, tenho a certeza de que a minha relação com o álcool nunca foi, digamos, normal. A bebida exercia um papel libertador para aquela menina assustada. E agora que relembro esse episódio, entre tantos outros flashes do início da minha carreira etílica, me volta à cabeça o dia em que virei um vinho na casa dos meus pais para telefonar a um garoto de que eu gostava —devia ter uns treze anos à época...

Não quero ser sensacionalista com meus posts. É que depois de muuuuuito tempo estou conseguindo dialogar melhor com minha doença e acho que posso ser útil a outras Alices que estejam sofrendo por aí. O processo de recuperação da doença é lento, tanto que o símbolo do programa de AA é uma tartaruga. Mas o mais importante é que tudo passa. A necessidade de beber, a ideia de que é impossível viver sem bebida, a vergonha, a raiva, a culpa… Tudo passa.

Foi difícil para mim admitir que meu problema era a bebida, então cheguei a uma sala do AA em um fundo do poço muito, mas muito fundo. A única vontade que eu tinha era de sumir. Lidar com o alcoolismo foi duro, por isso hoje, se conseguir poupar alguém, me sinto extremamente feliz. Tenho recebido mensagens de leitores de que meus textos estão ecoando! A alegria e a satisfação cada vez que eu recebo uma mensagem é indescritível.

Por isso, repetindo mais uma vez: há vida sem o álcool, há uma solução para o sofrimento e a dor do alcoolismo.

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