Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu Mente

Quarto, guarda-roupa, pote de ração: a insanidade que é esconder a bebida

É um alívio pensar que não escondo mais nada, ou quase nada; a verdade e a transparência me libertam

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Gosto muito de cinema de rua e naquela quarta-feira, por ter acordado um pouco deprê, resolvi me dar de presente uma sessão às três da tarde. Queria ver um filme francês que tinha sido muito elogiado por amigos. Trabalhei pela manhã, tive um almoço tipo reunião e de lá eu sairia direto para o cinema. (Controlo minha agenda, e pequenos descansos da rotina são fundamentais para mim.)

Cheguei cedo, comprei o ingresso, um café e uma água com gás. Fiquei no saguão degustando a água-geladinha-e suas-bolinhas, sentada num ponto de observação bom para ver quem chegava. O meu desvio de rota estava funcionando e eu já respirava mais aliviada da angústia matinal.

Faltando cinco minutos para o filme, fui para a entrada da sala com um saco de pipoca (compro sempre o maior) e o moço me pediu o bilhete… Claro que eu não achava!! Revirei a bolsa, tateando tudo que eu tinha acumulado dentro dela. Enfim, achei o ingresso. Peguei e junto veio uma tampinha de long neck, e ela caiu no chão, fazendo aquele barulhinho característico. GE-LEI.

'No final do meu alcoolismo ativo, eu escondia tudo dentro da bolsa' - Adobe Stock

O que é que aquilo estava fazendo ali? Explico meu espanto. No final do meu alcoolismo ativo, eu escondia tudo dentro da bolsa. Garrafa, tampinha de long neck, latinhas, garrafinhas pequenas compradas em lojas de conveniência… Eu tinha tanta vergonha de beber tanto e o dia todo que acabava jogando o lixo para dentro. Sempre que falo isso lembro da música da Marisa Monte "Eu admiro o que não presta/ Eu escravizo quem eu gosto/ Eu não entendo/ Eu trago o lixo para dentro". Esses versos dizem muito da Alice bêbada. Na verdade, o álcool era meu caminho e minha chegada, não havia bifurcação que me fizesse mudar o rumo.

Qualquer coisa que me remeta aos dias de inferno com a bebida me deixa fora do eixo. Claro, não é nada fácil. Naquele momento da tampinha, do barulho, não deu para não lembrar do dia em que saí para uma reunião e meu chefe percebeu que tinha vidro na minha bolsa. "O que tem aí, Alice?" "Ah, nada não, uns potes da minha mãe. Sabe como eu sou, guardo tudo na bolsa."

Também lembrei de algumas vezes que rolaram tampinhas na frente das pessoas que pensavam que eu não estivesse mais bebendo. E de tantas outras, quando escondia garrafas ou latinhas atrás da privada para que ninguém visse. Onde é que eu estava com a cabeça? Como ninguém ia ver, mais cedo ou mais tarde, tudo aquilo no banheiro? E fazia isso em diversos banheiros: em casa de familiares e amigos, no trabalho… Ficava passada sempre que eu via as pessoas tirando essas evidências do banheiro.

Corta pro saguão do cinema. Não aguentei e comecei a chorar ali mesmo. Entrei na sala sofrendo com a turbulência das lembranças, mas o escuro seria bom para derramar as dores do passado em paz.

Quando escrevo, acho que posso soar dramática. Ou melhor: me sinto dramática, principalmente agora que já faz uns anos que não bebo. Mas sabe? Foi muito barra, eu bebia todo dia, o dia todo. São muitos sentimentos engolidos goela abaixo por tanto tempo. Também me dei conta, depois da cena da tampinha, de que no passado eu evitava ao máximo ir ao cinema. O que eu iria fazer numa sala trancada por mais ou menos duas horas? Não era uma opção. E então sempre me esquivava de programas como aquele que estava fazendo naquela quarta-feira, sozinha. Continuei chorando e devorei o saco de pipoca. Comi muito rápido, enchia a boca e chorava compulsivamente.

Às vezes me permito extravasar minha compulsão atacando comida, chocolate, muito chocolate. Desde que entrei no AA, ouço: "Se apertar, pode comer quanto você quiser: porcaria, salgadinho, doce… Qualquer coisa! Se permita. Você continuará lembrando de tudo que fez depois de três barras de chocolate". Foi o que fiz naquele dia e em vários outros, quando o passado vinha à tona.

Dá vergonha, dá medo de recair, dá medo de perder o controle das emoções… Mas daí compartilho o que aconteceu com companheiros de AA e fico leve, percebo que o medo faz parte e que aos poucos ele vai sendo substituído pela força que vou adquirindo com os anos da recuperação.

Gostaria de falar muito mais dessa insanidade que é esconder a bebida. Já me vi jogando garrafa no lixo do vizinho, já acumulei muuuuita garrafa no quarto. Como é que eu poderia deixar rastros? Então vinha toda essa loucura de espalhar bebida por tudo quanto é lado. Muitas vezes acordava e não lembrava onde tinha posto a garrafa. Cheguei a deixar no pote de ração do meu cachorro e no guarda-roupa do meu avô. São lembranças de uma dor gigantesca. Que no passado eu não conseguia suportar, e então bebia mais e ficava neste esconde-esconde enlouquecedor. Quando dividi meu apartamento com uma amiga, eu costumava deixar os frascos vazios embaixo da cama. E ali ficavam muuuuitos dias.

Naquele dia do cinema, programado para me tirar da angústia matinal, levei um duplo carpado das minhas próprias armadilhas. E viver em recuperação é isso. É bom falar, bom saber que tenho encontrado muitas pessoas que se identificam com o que escrevo. Será que preciso dizer que depois do filme, quando cheguei em casa, revirei todas as bolsas para ter certeza de não ter mais nenhuma surpresa? É um alívio pensar que não escondo mais nada, ou quase nada. A verdade e a transparência me libertam.

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