Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

Depressão associada ao álcool é um coquetel nefasto

Às vezes o desespero toma conta, eu bem sei, mas procurar ajuda é sempre um bom caminho

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Todo alcoólatra na ativa tem depressão, mas nem todo depressivo é alcoólatra. Quem está com depressão e faz uso da bebida como calmante talvez nem imagine o estrago que está causando a si mesmo.

Minha vida no mundo dos transtornos mentais começou aos 13 anos, quando fui diagnosticada com distimia, um tipo de depressão persistente que se manifesta por uma melancolia de fundo. Meu primeiro psiquiatra me disse categoricamente: É bem provável que você deverá tomar remédio durante um bom tempo. Quanto tempo? Enquanto estiver viva. Foi a forma mais gentil que ele encontrou para dizer aquilo a uma pré-adolescente.

Dr. M. tinha um ar sério mas paternal, senti que ele estava prestes a me dar um abraço. Não deu, mas foi como se tivesse dado, querendo atenuar a frase que me pareceu uma sentença. Para o resto da vida, todo dia, depois do café da manhã, eu deveria tomar um comprimido de xizajepan —e aqui boto um nome inventado, síntese de todos os medicamentos que tomei ao longo da vida—, não necessariamente na dose que estava prescrita naquele momento, nem a mesma substância para sempre. Tudo dependeria de como meu corpo iria reagir. O médico não desprezou nada do que eu falei durante a consulta. No final, ele me recomendou um acompanhamento terapêutico, eu precisava falar dos meus sentimentos. Não guarde nada para você, Alice.

Vida de Alcoólatra
Deprimidos não devem pôr uma gota de álcool na boca - Catarina Pignato

Devido às minhas crises de pânico, meus pais já haviam tentado curas alternativas. Fui a infinitos centros espíritas (e lá me diziam que eu tinha um encosto), frequentei a casa de um senhor que incorporava e jogava búzios, visitei inúmeras vezes uma curandeira, dessas de manual, que materializava coisas ao passar a mão na minha cabeça. Ela tirava pedra, panos sujos, tudo que poderia significar entraves, obstáculos.

Um dia, em um desses encontros com essa senhora, chegou a escorrer sangue da minha cabeça, muito sangue. Imagine o desespero da minha mãe, que não sabia mais o que fazer para me ajudar. Não culpo nada nem ninguém, as pessoas eram todas acolhedoras e esperançosas. Acho que toda forma de cura, de amor, de bem, deveria vir acompanhada de dois componentes de que naquele momento não dispúnhamos: tempo e paciência.

Minha família hesitou um bom tempo até abraçar a medicina tradicional. Na década de 1980, não se falava muito de depressão, ainda mais se o paciente fosse uma criança. Meus pais acabaram decidindo procurar um médico depois que eu tinha passado dois meses de férias na praia e não havia conseguido sair de casa para nada. Ficava grande parte do tempo no quarto, deitada, olhando o teto. Praticamente não vi o mar. Foram dias tenebrosos para mim e para minha família. Minha avó me fazia companhia, às vezes me pedia ajuda na cozinha. Aquilo de picar cebola, salsinha, tomate ia me acalmando. Daí meu prazer em cozinhar, suspeito.

Naquele mesmo ano em que consultei um psiquiatra, iniciei minha carreira no álcool. Foi numa festa, quando me ofereceram uma pinguinha para animar (repararam que sempre usam o diminutivo para se referir a bebidas? Uisquinho, cervejinha, pinguinha, tequilinha…). Eu era muito tímida e não sabia dizer não (aliás, ainda estou aprendendo). Todas as minhas amigas beberam e eu fui na cola delas. Mas o que poderia ser uma experiência menor foi transformador. Depois de alguns minutos minha cabeça parou de pensar e eu relaxei, cheguei a gargalhar. Uau, será que eu havia descoberto a solução para meu desconforto existencial e para a tal distimia?

O álcool fez um belo estrago depois do alívio inicial. Deprimidos não devem pôr uma gota de álcool na boca.

Bem, aqui estou, com mais de quarenta anos, boa parte dos quais convivendo com remédios. Me aceitei como doente de alcoolismo e larguei a bebida há alguns anos. E venho conseguindo melhorar minha condição distímica. Fui aprendendo a me acostumar com as coisas que não dão certo, e elas são muitas, pois vivemos numa montanha russa. Tento encontrar caminhos alternativos para as turbulências do percurso, e essas saídas acabam se revelando prazerosas.

Essa é a minha vida, e insisto em repetir em alto e bom som que há vida sem álcool, e que depressão associada ao álcool é um coquetel nefasto, que age como dinamite. Escuto muita gente dizer: meu namoro terminou, vou encher a cara. Estou desempregado, posso até beber mais, não preciso acordar cedo.

Cuidado. O alcoolismo é progressivo, o álcool é depressivo e pode despertar ideações suicidas. Às vezes o desespero toma conta, eu bem sei, mas procurar ajuda é sempre um bom caminho. Pelo menos foi para mim. E evitar ficar sozinho nas situações mais aflitivas. Falo com propriedade.

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