Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

Tirei, com o AA, o foco da dor. E as cores e sabores voltaram a aparecer

Eu achava que o mal-estar que sentia era normal

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Há três meses minha dentista viajou para o exterior, resolveu mudar de país. Às vésperas de seu embarque, fui ao consultório para o último atendimento. Ela descobriu uma cárie em um dos meus sisos. Que péssima hora!

Desde final de 2022 eu já sentia uma dor incômoda na boca e só naquele momento decidi investigar. Bem, aqui cabe um comentário sobre minha procrastinação, característica que sempre tive, bem pronunciada. Dizem que faz parte da doença do alcoolismo. Tenho o impulso de sempre deixar tudo para mais tarde. Impulso, não, seria melhor dizer que cultivo a inércia de deixar tudo para mais tarde... Venho trabalhando esse ponto na minha recuperação.

No caso do siso, a procrastinação transformou a baita dor que eu sentia em dezembro passado, quase insuportável, num leve incômodo quando punha alguma coisa gelada na boca. E isso porque fui me adaptando àquele desconforto e meu corpo se acostumou a ele.

Essa adaptação me é muito familiar. Quando eu bebia muito e estava alucinada, vivia numa zona de mal-estar. Não me cuidava, não prestava atenção nos outros, fazia exclusivamente o que o álcool estava pedindo. E quando comecei a entrar em recuperação, no início, entre muitas outras sensações, senti uma estranha. Parar de beber era fácil, difícil era não voltar a beber. Era como remar contra uma correnteza muito forte. E em meio a esse turbilhão meu corpo pedia cama, pedia sono, pedia inércia. E tive que virar esse jogo. Só que dessa vez não estava sozinha: estava acompanhada da força do grupo.

O que são os dentes sisos?
'Fui me adaptando àquele desconforto da dor do siso, e meu corpo se acostumou a ele. Essa adaptação é muito familiar no alcoolismo' - Unsplash

Então me agarrei às sugestões que os outros alcoólatras já calejados na recuperação tinham a me dar. Fiz coisas que podem parecer absurdas, mas que me ajudaram muito. Passei uma tarde inteira, por exemplo, limpando minhas meias brancas, deixando elas sem um pingo de sujeira. Em casa sozinha, lá no comecinho do AA, eu precisava ocupar minha mente para aprender a passar o tempo de uma forma não perturbadora e que não me fizesse voltar ao uso, ao impulso da fuga. Estabeleci pequenas metas para me ajudar. Uma que deu muito certo foi dar uma volta no quarteirão de casa. Na primeira semana, dava uma volta só. Na segunda, dava duas voltas, na terceira, três, e assim sucessivamente. A sensação de cumprir metas me fazia bem.

Percebi que antes não conseguia terminar nada do que começava. Me propunha a fazer dança, a treinar na academia, a nadar, daí dava certo na primeira semana e eu depois largava. Tentei pintura, cerâmica, tricô, colagem, circo, italiano, natação, culinária, rodas de cura, meditação, curso de autoconhecimento… Era uma verdadeira expert em deixar as coisas pela metade, ou já no início.

Tinha vontade de fazer mil coisas e começava as mil, só que não terminava nenhuma. Era frustrante. Recomeçar me propondo novas metas estava me dando um certo prazer. E sentia prazer em perceber que estava sentindo prazer, pois antes, quando bebia, não sabia distinguir sentimentos, como já disse aqui no blog. O álcool confundia todas as minhas emoções. Hoje me policio para não deixar as coisas por fazer. Mesmo que demore um pouco.

Finalmente decidi tirar o siso, e hoje não tenho mais dor, é claro. (Pelo menos naquele dente, que nem existe mais!) Claro que comparo esse processo ao da liberdade em experimentar sensações sem me furtar a elas, me entorpecendo. Viver novamente sem aquela dor tem sido maravilhoso, como sem me preocupar com o lado em que devo mastigar. Também não sinto mais medo de comer determinadas coisas, provo tudo que posso e quero.

E conseguir experimentar novas sensações sem beber, sem temer o medo, sem a dor da culpa é uma coisa que me enche de alegria. Hoje acordo sem ressaca e posso fazer exercício, posso provar vários sucos e cafés. Amo café. E esse novo mundo de sabores é novo e muito prazeroso. Como diversas outras coisas são também muito prazerosas, experiências que não me permitiam viver porque o álcool embotava tudo.

Me libertei, só por hoje, de todos os fantasmas que o uso do álcool em excesso me trazia. Tirei o foco da dor e as cores, sabores e amores voltaram a aparecer. Hoje sou uma entusiasta da vida, das descobertas, das amizades. E a recuperação é progressiva. Cada dia que passo em sobriedade, sem "dente do siso doendo", é um dia para experimentar novas coisas e lidar com todas elas.

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