Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
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Quem abusa do álcool geralmente odeia café

Após um almoço regado a bebida, como tomar um cafezinho? Hoje, porém, o café me reconecta a quem machuquei

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Eu nunca quis machucar ninguém, mas machuquei. Nunca quis dizer muitas coisas que disse a amigos e colegas que talvez nunca me perdoem, mas aconteceu. E tem coisas que não voltam. (E nem preciso dizer que em todas essas ocasiões eu estava alcoolizada.)

Isso não acontece apenas comigo que sou alcoólatra, eu sei. Mas a diferença é que, para remediar o que eu tinha feito, eu bebia mais, o que em geral piorava ainda mais a situação. Se eu bebia e não sabia o que tinha feito, o meu antídoto para esquecer que eu não sabia o que tinha acontecido era beber mais. E isso ia virando uma bola de neve tão grande que já rolava sozinha, era difícil de frear.

Eu aprendi a me medicar com a bebida. Se alguma coisa estivesse muito ruim na minha vida, não importava o quê, eu apelava direto para a bebida, como um remédio. Não importava a dor, eu corria para o álcool para me aliviar.

Teve um momento em que o ato de beber deixou de ser recreativo para ser punitivo —eu me punia por beber, e me punia bebendo. E aí foram anos de pequenas euforias e imensas dores e estragos.

Até que não deu mais.

No dia em que eu me vi derrotada por completo, e nesse ponto acho que muitos alcoólatras que me leem se reconhecem, eu fui parar em uma sala de Alcoólicos Anônimos —uma terapia em grupo em que não existe julgamento. Saindo da minha primeira grande aula (pois cada encontro nos AA é uma grande lição de vivências), eu vi um letreiro: Nunca é tarde. Fazia parte de alguma propaganda, não lembro qual, mas bateu fundo no meu cérebro, como um recado certeiro.

Nesse dia decidi tampar a garrafa e jogar fora não só a rolha como qualquer ideia de me esconder atrás do álcool. E também mudei um monte de outras coisas. Não da noite para o dia, certamente. Uma coisa de cada vez. Primeiro passei por uma desintoxicação que durou alguns meses —sim, o álcool permanece no corpo, ainda fazendo um certo mal. O organismo sentia falta da substância, então eu não dormia muito bem, não conseguia me alimentar direito e fui aprendendo a tomar água, comer fruta e começar o dia preparando um café.

Na colagem digital de Marcelo Martinez, dois cafés estão sobre uma mesa, sobrepostos por imagens de antigos balões.
'Hoje, quando vou ao supermercado, troco a prateleira de bebidas alcoólicas pela dos cafés' - Marcelo Martinez /Marcelo Martinez

Eu, bêbada, odiava café. E constato que não tomar café é um sinal de pessoas que abusam do álcool. Quando termina aquele almoço regado a muita bebida, quem se anima para um cafezinho? Eu nunca, jamais. Tomar café era cortar a euforia e as saideiras intermináveis.

Hoje, quando vou ao supermercado, troco a prateleira de bebidas alcoólicas pela dos cafés. Aprendi que existem vários tipos, com vários preços. E estudar cada um virou uma pequena alegria, encontrar os melhores e curtir o aroma de cada um. Alguns são caros, outros mais baratos, mas dá para equilibrar. Em viagens também gosto de degustar os mais diversos tipos.

Eu não posso comparar meu hábito de sommelier de café com o de sommelier de bebida porque a verdade é que nunca degustei nenhuma bebida alcoólica. Eu simplesmente queria ficar bêbada, não me interessava o gosto de nada. Para mim, harmonizar bebida com comida nunca foi uma realidade.

Com o café já é diferente. Dá para pensar em bolachas e bolos. Também tem todo o ritual, existem várias cafeteiras e formas de preparar. Dá para moer o grão e deixar a casa com um cheirinho agradável, mas acho que isso é para os mais avançados. Eu mesma só me arrisco a experimentar diversos pós. E degusto o café puro ou com leite, com espuma.

Além de tudo, um café é convidativo para uma conversa. E ele é presença certeira em todas as reuniões de AA. E talvez uma dica para que, fora da sala, vire uma rotina para resgatar laços que se transformaram em nós cegos com a dor de desavenças com o álcool.

Se no passado eu machuquei as pessoas, aos poucos, com alguns goles de café e algumas conversas mais centradas, tudo foi voltando. Bem, tem coisas que nunca voltam, mas aí é dar espaço para o tempo trabalhar. A minha parte eu vou fazendo. Todos os dias, sem exceção, são uma batalha.

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