Vidas Atípicas

Em busca de respostas para dúvidas profundas e inesgotáveis sobre o autismo

Vidas Atípicas - Johanna Nublat
Johanna Nublat

O que é o autismo profundo

Definição foi proposta, em 2021, por um comitê da revista The Lancet

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

No fim de 2021, uma comissão da revista The Lancet sobre o futuro da atenção e das pesquisas clínicas sobre autismo defendeu que o termo "profound autism" (traduzido no Brasil como autismo profundo) fosse usado, para fins administrativos, para se referir a autistas que "requerem acesso, 24 horas por dia, a um adulto que possa cuidar deles em caso de alguma necessidade, não podendo ficar completamente sozinhos em uma residência e não sendo capazes de cuidar de necessidades adaptativas diárias básicas".

Segundo a comissão, a maior parte desses casos estaria associada a uma substancial deficiência intelectual, linguagem muito limitada ou ambos.

Imagem do livro 'Menino Baleia', de Lulu Lima
Imagem do livro 'Menino Baleia', de Lulu Lima, sobre uma criança autista - Reprodução

Meses depois, no começo de 2022, essa ideia foi rebatida como "altamente problemática" por um outro comitê, o Global Autistic Task Force on Autism Research.

Na entrevista abaixo, uma das coordenadoras do comitê do Lancet, Catherine Lord, professora da UCLA (Universidade da Califórnia), argumenta que o objetivo do termo foi garantir atenção e serviços necessários para uma parcela de autistas — estimada em 20% a 30%, segundo ela — que, com frequência, não consegue defender seus próprios interesses.

Na conversa, Lord também explica por que essa classificação não pode englobar crianças menores de 8 anos, diz que não se trata de atribuir uma etiqueta negativa a ninguém e afirma não ter certeza de que a tradução para "profundo", em português, seja a melhor escolha.

O que é o autismo profundo? Em que esse conceito difere do nível 3 de suporte? Com certeza ele se sobrepõe ao nível 3 de suporte. Estávamos preocupados que as pessoas não usam as categorias de níveis de suporte e que elas não estão muito bem definidas. Não sei como é no Brasil, mas especialmente nos Estados Unidos e no norte da Europa, há muita atenção dada às pessoas muito inteligentes e muito verbais que têm autismo. De fato, essas pessoas existem, elas são reais e têm necessidades. Mas elas não são todo mundo. Com frequência, as pessoas esquecem das pessoas que não falam ou que não falam bem o suficiente para dizer do que precisam. Assim, nós queríamos garantir que mais atenção fosse dada ao fato de que existe esse grupo, que não é todo mundo, mas é um grupo significativo de pessoas com autismo. Esse grupo não pode ser determinado quando as crianças são muito pequenas: não sabemos em que grupo crianças de 2 ou 3 anos vão estar. Mas, a partir do final do ensino fundamental e na adolescência, fica mais claro que essa criança é alguém que pode aprender muita coisa e ter muitas alegrias na vida, mas que provavelmente vai precisar de coisas diferentes do que a preparação para ir para a universidade, dirigir, gerenciar sua própria casa. Quando as pessoas falam com frequência sobre um tema, elas precisam de uma expressão curta. Por exemplo, no CID-11 [a última edição da Classificação Internacional de Doenças], há frases bem longas sobre alguém com autismo e deficiência intelectual, atraso de linguagem, convulsões. Tudo isso é verdade, mas ninguém fala [a definição toda]. A gente quis trazer um termo mais curto, que as pessoas usariam. Não sei em português, mas pelo menos em espanhol não pode ser traduzido como "profundo". Não tenho certeza de que "profound" seja a melhor palavra, mas queríamos nos afastar de "severo", porque há muitas formas de alguém ser severamente impactado. Você pode ser uma pessoa muito inteligente, capaz de se vestir e sair para trabalhar, de viajar, mas que é severamente deprimido. Ou muito ansioso. Ou inflexível.

Qual o problema com profundo? Os nativos e fluentes em espanhol no nosso grupo sentiram que profundo poderia ter muitas outras conotações. Como algo místico, e não é disso que estamos falando. Estamos falando de alguém que é muito significativamente afetado não só pelo autismo mas também por atrasos cognitivos e de linguagem.

A pessoa precisa ter deficiência intelectual para estar nesse grupo? Sim. Não é apenas que elas não fazem coisas, mas, em termos de desenvolvimento, não são capazes de fazer muitas das tarefas cotidianas que um adulto independente faria.

Se a pessoa fala poucas palavras ou frases simples, mas não tem deficiência intelectual, ela poderia entrar nessa categoria? Ela provavelmente poderia, mas seria muito raro. A suposição é que é alguém que não apenas não pode falar muito bem mas também não entende a linguagem falada ou escrita, e não entende as complexidades de coisas como ter uma conta no banco ou precauções de segurança.

Se a pessoa tem deficiência intelectual e autismo, ela necessariamente entra nessa categoria? Você poderia ter uma deficiência intelectual leve e não estar nessa categoria. A categoria quer descrever pessoas que, por exemplo, precisam de cuidados 24 horas por dia. Não que alguém tenha que ficar de olho nelas todos os minutos, mas são pessoas que você não deixaria sozinhas em uma casa por mais de 15 minutos, por preocupação com a segurança delas. Mas, como esse tipo de fenômeno não está em registros médicos, hospitalares ou educacionais, e você não consegue encontrar essas informações, nós decidimos usar QI e nível de linguagem.

Qual o percentual de autistas que estariam nessa categoria? É possível estimar de muitas maneiras, mas depende de quem calcula e de como se calcula. Nos Estados Unidos, nós estimamos em 20% a 30%. Não é um número insignificante. Em outros países… por exemplo, eu acabei de voltar da Índia. Na Índia, há pessoas com alto QI com autismo, mas elas dificilmente são diagnosticadas. Então, quase que todas as pessoas que têm diagnóstico de autismo cairiam na categoria de profundo. Não acredito que a prevalência varie em diferentes países, mas é quem recebe o diagnóstico. Tínhamos algumas pessoas da Argentina no nosso comitê e elas sentiam que, na Argentina, quase todas as pessoas atendidas em serviços para autistas também cairiam na categoria de profundo.

A partir de que idade é possível definir alguém com autismo profundo? Muitas crianças de 2 anos com autismo não falam, mas isso não quer dizer que elas nunca vão falar. Ou talvez falem só um pouco. O que realmente é importante, ao determinar o que eventualmente vai acontecer com aquela criança, é o quão rápido ela faz progressos. Mas temos crianças com experiências muito diferentes: se não conseguem diagnóstico, dependendo de onde estão ou de quem as apoia nos anos pré-escolares. Nosso comitê definiu que não [se definiria] antes dos 8 anos de idade, e mesmo 8 anos pode ser um pouco cedo demais. Realmente depende de se a criança teve uma experiência educacional boa e se as pessoas realmente estão tentando ensiná-las, mas, apesar disso, elas ainda não estão aprendendo no ritmo em que você gostaria. Aí é quando você começaria a pensar nessa ideia. Mas há variabilidade demais nos primeiros anos. Há crianças que são "late bloomers", que não falam aos 2 anos e talvez nem aos 3 anos de idade, mas, aos 4 anos, elas de repente começam a falar. Com frequência, elas estão atrasadas, mas fazem progressos. Precisamos ter muito cuidado para não etiquetar crianças… [o autismo profundo] não deveria ser uma etiqueta negativa. É para ser uma etiqueta que ajude as pessoas a focarem melhor no que aquela criança precisa e que garanta que ela realmente tenha acesso aos serviços necessários.

Vamos dizer que uma criança, aos 8 anos, caia nessa categoria. Nós deveríamos pensar em mudar a intervenção? Exatamente. Acabei de conhecer um menino de 8 anos. Ele está em uma escola regular, fala palavras isoladas, não está desfraldado, não se veste sozinho e não pode ir a lugar nenhum sem que alguém o esteja segurando, porque ele foge. Apesar disso, o que estão ensinando a ele… o que acham que estão ensinando a ele é somar e subtrair. Mas ele não entende nem o que é o número um. Eles fazem com que ele atue em tarefas que não são reais e isso não é um bom uso do tempo dele. Não queremos que as pessoas desistam de crianças quando dizemos que elas têm autismo profundo, mas é uma grande chave que vira em termos de o que esperamos daquela criança e de que tipos de coisas aquela criança precisa aprender.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.