Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite

China entra na corrida por psicodélicos não alucinógenos

Science destaca análogos de LSD com ação antidepressiva testada em camundongos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Mal começou 2022 e uma pequena bomba no campo da renascida ciência psicodélica sai na edição desta sexta (28) da revista Science: pesquisadores chineses anunciam compostos semelhantes a LSD que teriam efeito contra depressão sem desencadear o estado alterado de consciência conhecido como "viagem" (alucinações, experiências místicas, dissolução do ego e por aí vai).

É o sonho da indústria farmacêutica.

Múltiplas pesquisas vêm demonstrando o potencial de psicodélicos --DMT, LSD, psilocibina etc.-- no tratamento de transtornos de humor como depressão, estresse pós-traumático e ansiedade. Eles carregam a desvantagem de provocar distorções mentais que duram várias horas, o que exige supervisão constante e encareceria sobremaneira eventuais tratamentos baseados em substâncias já um tanto estigmatizadas pela fracassada Guerra às Drogas dos anos 1970.

Uma corrente da pesquisa psicodélica privilegia, por isso, a busca por compostos que mantenham a ação terapêutica e descartem o efeito psicodélico, que alguns consideram desnecessário (posição controversa, como se verá mais abaixo). O grupo de Cao Dongmei e Wang Sheng, do Instituto de Bioquímica e Biologia Celular de Xangai, deu um passo nessa direção, ainda que por ora usando só camundongos.

três círculos coloridos mostram estruturas moleculares e compõem a imagem de uma pessoa em bcicleta
Ilustração do grupo de Cao Dongmei distribuída com artigo na revista Science - Reprodução

Ninguém sabe o que se passa dentro do crânio de roedores, mas é possível observar o que fazem com ele. Pesquisadores recorrem a um modelo bem estabelecido de comportamentos correlacionados com depressão humana ("freezing", ou congelamento) e alucinações ("head twitch", espécie de tique de cabeça) para obter pistas sobre o efeito neurológico dessas drogas.

A equipe de Xangai entregou-se a um minucioso estudo das estruturas moleculares formadas por LSD e psilocina (oriunda de cogumelos "mágicos") quando se encaixam no receptor 5HT2A. Esta estrutura na superfície de células neurais é a fechadura em que se encaixa a chave da serotonina, neurotransmissor importante na regulação de funções como humor e libido e o alvo de vários antidepressivos no mercado (os quais, no entanto, não funcionam para 30-40% dos deprimidos).

Os cientistas chineses fizeram o mesmo mapeamento molecular da própria serotonina encaixada no 5HT2A, e também com a lisurida, substância parecida com LSD e sabidamente não alucinógena, usada no tratamento de Parkinson e enxaquecas. O exame atento dos pontos de contato em cada conjunto de chave e fechadura deu ao grupo pistas de mudanças que poderiam realizar no LSD e na psilocina para não deslancharem o efeito psicodélico, preservando entretanto a ação antidepressiva.

Com a ajuda dos camundongos, chegaram a dois compostos, IHCH-7079 e IHCH-7806, que parecem ter ação antidepressiva sem iniciar a viagem, quer dizer, os tiques de cabeça nos roedores. O próximo passo, claro, será descobrir se acontece a mesma coisa com seres humanos.

"Prevemos que as estruturas aqui relatadas vão acelerar a busca por novos psicodélicos e análogos não alucinógenos de psicodélicos para tratamento de doenças neuropsiquiátricas", concluem os autores do estudo na Science.

Ilustração colorida semi abstrata
Ilustração mostra elementos do culto Bwiti do Gabão que usa planta Tabernanthe iboga - Reprodução/Ebando.org

O time da China não é o primeiro a trilhar essa via mais sóbria, por assim dizer, em direção à nova farmacologia psicodélica, ou quase-psicodélica. Ela está no centro da estratégia desenhada por David E. Olson, da Universidade da Califórnia em Davis, conforme já discutido aqui sobre um análogo da ibogaína que ele criou, que pretende testar contra dependência química, mas sem detonar a viagem da raiz africana que pode durar dezenas de horas.

Olson fundou a companhia Delix Therapeutics para explorar esse veio não-psicodélicos dos psicodélicos. Seu lema empresarial é "Reconectando o cérebro para curar a mente", e a primeira parte da frase deixa claro que se trata de buscar alterações físico-químicas para tratar depressão etc., e não de substâncias que propiciem autoconhecimento, experiências limítrofes ou visões prenhes de significado --como defende a ala dos terapeutas psicodélicos tradicionais.

Para a indústria farmacêutica, seria interessante chegar a drogas antidepressivas que prescindam de tratamentos psicoterapêuticos alongados, de preferência para uso contínuo. Outras estratégias de pesquisa clínica privilegiam psicodélicos como adjuvantes da psicoterapia, com protocolos em que são usados apenas ocasionalmente.

Tudo que o campo psicodélico renascido não precisa, no momento, é ser polarizado pelo falso dilema entre farmacologia e autoconhecimento. Já vimos esse filme, na década de 1980, com o advento de supostamente milagrosas "pílulas da felicidade" (inibidores seletivos de receptação se serotonina como Prozac), e ele não tem final feliz: nunca houve tantos deprimidos, dependentes e traumatizados no mundo quanto neste milênio, que começou tão doente.

P.S.: A ilustração principal deste texto, composta com as imagens moleculares geradas pelo grupo de Cao Dongmei, forma a imagem de um ciclista, e leitores que não conheçam a rica história psicodélica pré-proibicionismo se perguntarão por quê. É uma referência ao chamado Dia da Bicicleta, 19 de abril de 1943, quando o químico suíço Albert Hofmann iniciou a primeira viagem lisérgica intencional e foi correndo de seu laboratório para casa montado numa magrela.

P.S.2: Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.