Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu câncer

Ciência psicodélica nacional alcança até cuidados paliativos

LSD e ayahuasca ajudam doentes graves, cognição, tabagismo e ansiedade social

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São Paulo

A enxurrada de artigos científicos sobre psicodélicos --mais de 3.000 trabalhos publicados de 2016 a 2021-- acaba de ser ampliada com quatro itens originários do Brasil, terceiro país em número de estudos de impacto nessa área. Boas novas para pessoas com doenças graves, idosos, deprimidos, tabagistas e ansiosos.

A principal novidade saiu no Journal of Pain and Symptom Management, um artigo pioneiro sobre psicodélicos no periódico dedicado a cuidados paliativos. Trata-se de uma revisão sistemática com o título "O Potencial de Terapias Assistidas por Psicodélicos para Controle de Sintomas em Pacientes Diagnosticados com Doenças Graves".

Cortes mostram imagem esquemática de interior de dois crânios, uma com cérebro sob droga inócua mostrando pouca atividade neuronal e outra sob LSD e muita atividade
Imagem de ressonância magnética nuclear mostra atividade de cérebro sob placebo (esq.) e sob LSD (dir.) - Reuters/Imperial College

A revisão surgiu da parceria de Ana Cláudia Mesquita Garcia, enfermeira e professora da Universidade Federal de Alfenas (MG), com Lucas Oliveira Maia, biólogo da Icaro (Interdisciplinary Cooperation for Ayahuasca Research and Outreach, na sigla em inglês, algo como Cooperação Interdisciplinar para Pesquisa de Ayahuasca e Difusão), da Unicamp.

Revisões sistemáticas levantam de modo exaustivo o que se publicou em periódicos consagrados sobre determinado tema. Neste caso, o uso de psicodélicos para amenizar sofrimento físico e mental de portadores de doença grave.

De uma amostra inicial de 65 artigos, filtros de qualidade e uniformidade aplicados reduziram-na para 20, abarcando um total de 640 participantes em estudos publicados de 1964 a 2021. Na maioria (75%), pessoas com diagnóstico de câncer.

Mais da metade dos estudos envolveu LSD e foi feita nos anos 1960/70, tendência abortada com a proibição da substância no início da Guerra às Drogas (1971). Entraram no levantamento 347 pessoas tratadas com LSD, em geral com bons resultados na redução de sintomas como ansiedade e depressão diante da morte.

Esse tipo de investigação sobre doentes graves só foi retomado na virada do século 20 para o 21, na Universidade Johns Hopkins. Na nova leva, o psicodélico investigado foi psilocibina, que ocasiona "viagens" mais curtas (4-6h) que o LSD (6-12h) e tem menor chance de desencadear experiências negativas, como ataques de pânico.

No geral, esses estudos indicaram a ausência de efeitos adversos graves, físicos ou mentais, todos de intensidade leve ou moderada e transitórios.

"Embora nosso estudo confirme o potencial terapêutico e o amplie para sintomas físicos (p.ex. dor no câncer) e outras formas de desconforto psiquiátrico ou psicológico (p.ex. ansiedade, depressão e transtornos de adaptação), ele também ressalta a importância das condições nas quais o tratamento é ministrado para garantir segurança", escrevem os autores.

"Terapias assistidas por psicodélicos precisam incluir considerações cuidadosas relacionadas com triagem, preparação, dosagem e sessões de integração apropriadas, de acordo com protocolos baseados em evidências." Ou seja, mais estudos são necessários para detalhar tais protocolos, mas o potencial dos psicodélicos em cuidados paliativos é promissor.

Lucas Maia, 34, figura ainda como co-autor em dois outros dos quatro estudos em tela. Um investigou impactos do LSD no desempenho cognitivo de participantes um dia depois da ingestão. O outro se concentrou em pessoas que atribuem ao efeito da ayahuasca terem abandonado o hábito de fumar.

"Faz parte de mim essa formação variada e multidisciplinar", diz o pesquisador nascido em Goiás, que agora estuda psicologia para tornar-se terapeuta. "Fui acumulando conhecimento de várias áreas: modelos animais, farmacologia, pesquisa qualitativa, experimentos clínicos com psicodélicos."

Jovem pesquisador com cabelos curtos, barba e bigodes pretos, camisa escura
Lucas Oliveira Maia, biólogo e pesquisador de ciência psicodélica, co-autor de três artigos recentes - Arquivo Pessoal

Maia tem predileção especial pela área de cuidados paliativos. Fez em 2020 um curso de seis meses para formação de "doulas da morte", profissionais especializados em acompanhar e amparar pessoas no fim da vida, assim como suas famílias.

"A gente não fala e não pensa sobre a morte", lamenta o pesquisador. Ele atribui sua atitude serena diante do inevitável ao interesse por ioga e budismo, "que têm outra forma de olhar a morte e cuidar dela".

O LSD iria ser seu tema de doutorado, mas logo ficou evidente que o escopo do projeto sob orientação do psiquiatra Luís Fernando Tófoli, da Unicamp, não caberia nos dois anos de que ainda dispunha para realizar a defesa de tese. O projeto que começara a delinear passou para Isabel Wießner, das mãos de quem saíram três artigos sobre o ácido lisérgico já comentados neste blog (aqui, aqui e aqui, por exemplo).

O quarto e último deles aparece agora no periódico European Neuropsychopharmacology sob o título "LSD, afterglow and hangover: Increased Episodic Memory and Verbal Fluency, Decreased Cognitive Flexibility" (algo como LSD, brilho residual e ressaca: Memória episódica e fluência verbal aumentadas, flexibilidade cognitiva diminuída), e traz Maia entre os autores.

Como já se descreveu antes no blog, o estudo por trás dos quatro trabalhos aplicou vários testes a 24 voluntários saudáveis em duas sessões separadas por duas semanas, uma com LSD e outra com placebo. Participantes não sabiam em qual dia tomaram o quê (embora lhes fosse fácil adivinhar), tampouco os pesquisadores que aplicavam os testes ao longo de dez horas.

No dia seguinte pela manhã, novos testes envolviam jogos de memória, reprodução de desenhos, adivinhação de sequências lógicas e emissão de séries de palavras associadas em intervalos especificados de tempo. A ideia era verificar se o LSD exercia algum efeito residual positivo ("afterglow") ou negativo ("hangover") em diferentes capacidades cognitivas.

Já fora do efeito agudo do LSD após uma noite de sono, os participantes produziram resultados díspares. Por um lado, saíram-se melhor em jogos de memória e nas séries verbais. Por outro, tenderam a insistir mais em erros de adivinhação na manhã pós-LSD.

"Os resultados são interessantes para a clínica e o desenvolvimento de novos tratamentos com essas substâncias para várias condições clínicas negligenciadas até agora, como em pacientes com demência, acidente vascular cerebral ou simplesmente nas perdas cognitivas regulares durante o envelhecimento", avalia Wießner.

Jovem loira de coque sentada em frente de computador e parede com recortes
Isabel Wiessner, psicóloga alemã que escolheu o Brasil para pesquisar efeitos de substâncias psicodélicas - Arquivo Pessoal

Os resultados, diz a pesquisadora alemã, não indicam diretamente que o LSD seja útil para esses grupos, já que a amostra investigada era de pessoas saudáveis e relativamente jovens (média de 35 anos). O importante, para ela, é que o artigo indica possíveis melhoras em vários aspectos cognitivos não relacionados entre si, como memória e fluência verbal, que dependem de diferentes áreas cerebrais e são detectáveis ainda 24 horas após uma dose única e baixa.

A melhora na consolidação da memória após psicodélicos já havia sido mostrada com ratos, mas o estudo de Wießner, Maia e colegas foi o primeiro apontando melhoras detectáveis em humanos. "Os resultados sugerem um potencial terapêutico que pode permanecer após o uso agudo e apontam um caminho novo de investigação em áreas clínicas anteriormente não associadas com tratamentos psicodélicos", afirma a psicóloga, como no caso da velhice.

Além disso, o grupo também detectou diminuição na flexibilidade cognitiva, resultado único na literatura, a revelar que a perda durante efeitos agudos (mostrada em estudos anteriores) permanece até o dia seguinte. Um problema para atividades, no dia após consumo de um psicodélico, que demandem monitoramento do próprio desempenho e adaptação contínua a novas condições.

"Deveria ser considerada, por exemplo, a recomendação de um dia de descanso após o uso recreativo, ou na terapia, sem trabalhos que exijam performance cognitiva alta." Nem pense em tomar ácido num dia e ir trabalhar como controlador de tráfego aéreo no dia seguinte, por exemplo.

O terceiro e último artigo da série recente com participação de Lucas Maia também tem relação com o grupo Icaro, da Unicamp. "Ayahuasca e Interrupção do Consumo de Tabaco: Resultados de um Levantamento Online no Brasil", no prelo do periódico Psychopharmacology.

Maia foi um dos supervisores dessa pesquisa da aluna Carolina Marcolino Massarentti feita pela rede de computadores com 441 pessoas que haviam parado de fumar e atribuíam a façanha ao uso de ayahuasca.

Morrem a cada ano no mundo mais de 6 milhões de pacientes com doenças relacionadas ao tabagismo. No Brasil são 150 mil mortes, que ocasionam um custo ao sistema de saúde da ordem de mais de R$ 60 milhões, informa o artigo.

A ideia era replicar estudo semelhante da Universidade Johns Hopkins, que usara psilocibina, não ayahuasca. No caso brasileiro, verificou-se que as condições mais associadas ao sucesso em abandonar o cigarro foram intensidade das vivências místicas sob efeito da substância e seu uso frequente (muitos participantes eram praticantes de religiões ayahuasqueiras como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal).

Por outro lado, aqueles que relataram humor positivo durante a experiência psicodélica da ayahuasca figuraram entre os que tiveram mais recaídas e maior dificuldade em deixar o fumo. "É difícil interpretar esse dado, precisamos de outros estudos", diz Maia.

Uma interpretação possível entraria em linha com a crença, entre ayahuasqueiros, de que vivências tormentosas sob efeito da substância (que chamam de "peia", surra), assim como eventuais vômitos ou diarreias, são parte indissociável do autoconhecimento propiciado pela "planta professora". Ou seja, para chegar às raízes de problemas, como dependência, a jornada não costuma ser fácil.

Por fim, o quarto artigo brasileiro da safra recente é o único que não tem relação nem com Maia nem com a Icaro. "Efeitos da Ayahuasca no Sistema Endocanabinoide em Voluntários Saudáveis e em Voluntários com Transtorno de Ansiedade Social: Resultados de Dois Ensaios Pilotos, Provas-de-Conceito, Randomizados e Controlados por Placebo", que saiu no periódico Human Psychopharmacology.

Neste caso a equipe está baseada noutro centro com larga experiência no estudo da ayahuasca, o do psiquiatra Jaime Hallak na USP de Ribeirão Preto.

Em foco estavam substâncias produzidas no cérebro que guardam parentesco próximo com componentes da maconha e são por isso chamados de endocanabinoides. Os níveis do endocanabinoide anandamida foram medidos em voluntários sãos e em pacientes com transtorno de ansiedade social (TAS).

Já se sabia que psicodélicos serotoninérgicos, como o DMT da ayahuasca, que agem nos receptores do neurotransmissor serotonina (5HT2a), interagem com o sistema endocanabinoide. Ao testar essa interação em pessoas saudáveis e em outras com TAS, o grupo verificou que as últimas tiveram aumento da anandamida.

O primeiro autor é Rafael Guimarães dos Santos, que explicou ao blog a relevância do estudo: "Existem evidências pré-clínicas de que agonistas 5HT2a, incluindo alucinógenos, modulam o sistema endocanabinoide, e esse sistema está associado com o controle da ansiedade. Mas a possível interação em humanos nunca tinha sido testada".

Apesar dos pesares, a ciência psicodélica brasileira se move --e segue em frente.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"

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