Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

UFRN testa psicodélico inalado para abreviar terapia de depressão

Parceria com firma Biomind busca manter vanguarda no estudo da DMT da ayahuasca

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São Paulo

O Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte deu a largada em testes clínicos com vaporização do psicodélico dimetiltriptamina (DMT) --componente psicoativo da ayahuasca-- para depressão resistente a tratamento. A empresa canadense Biomind Labs, parceira do ICe-UFRN, anunciou a primeira inalação de DMT na etapa piloto de um ensaio clínico de fase1/2.

O grupo do físico Dráulio Barros de Araújo na UFRN dá continuidade, assim, a seu estudo pioneiro com ayahuasca, o primeiro a testar uma substância psicodélica para depressão seguindo o padrão ouro da pesquisa biomédica (ensaio duplo cego controlado por placebo). Comprovou-se, na ocasião, um efeito antidepressivo rápido e sustentado por sete dias do chá.

Neurocientista Dráulio de Araújo, com cabelos brancos, óculos e blusão azul, discursa diante de microfone
Neurocientista Dráulio de Araújo faz palestra na conferência Psychedelic Science 2017 - Arquivo Pessoal/Luís Fernando Tófoli

O artigo científico saiu em 2018. Esse e outros estudos com ayahuasca, como os da USP de Ribeirão Preto, puseram o Brasil no terceiro posto mundial em trabalhos de impacto sobre psicodélicos.

A diferença está em que, desta vez, não se usou a bebida de religiões como Santo Daime, UDV e Barquinha, mas DMT pura. Na forma de beberagem, a ayahuasca precisa ser preparada com plantas contendo betacarbolinas, como o cipó-mariri, pois essas substâncias inibem a degradação da DMT do arbusto chacrona no aparelho digestivo.

O experimento usa o vaporizador Volcano Medic, já empregado para compostos da cânabis. Pelas vias aéreas, a DMT cai na circulação sanguínea e chega mais rápido ao cérebro.

O efeito dura 10-15 minutos, intervalo bem mais compatível com a aplicação clínica do que as três horas ou mais da ayahuasca. Araújo vai testar também injeções intramusculares de DMT, cujo efeito se prolonga por cerca de uma hora.

Um dos objetivos é comparar as duas formas de administração da DMT e medir o efeito antidepressivo de cada uma. O físico também espera tirar alguma pista sobre a contribuição da experiência psicodélica propriamente dita (a "viagem") para o benefício terapêutico em investigação.

Nem todo mundo está disposto ou preparado para enfrentar a viagem prolongada. Neste caso, a inalação pode ser uma opção melhor para o deprimido (já existe uma substância dissociativa contra depressão para uso pela via nasal, escetamina).

Por outro lado, muitos pesquisadores acreditam que a vivência psicodélica é importante, se não imprescindível, para o processo de cura. Isso porque ela faz aflorar conteúdos mentais recalcados, como traumas, que servem de matéria-prima para a psicoterapia.

No plano de Dráulio Araújo, 50, está investigar a DMT de maneira integrada, "de A a Z". Ele está terminando de compor a tripulação na UFRN, com cerca de 20 pessoas, entre psiquiatras, psicólogos, químicos, enfermeiros, experimentadores animais e fisiologistas.

"Estou me divertindo como nunca antes fazendo ciência", comemora o físico e chefe da equipe, que começará a recrutar pacientes nas próximas semanas. Ele tem compromisso com a Biomind de completar o ensaio com inalação até o final deste ano.

Letra M estilizada em ondas de traço branco sobre fundo com manchas difusas nas cores azul, violeta, rosa e vermelho
Logotipo da empresa canadense Biomind Labs - Reprodução

A parceria começou há cerca de um ano, por iniciativa do empresário uruguaio Alejandro Antalich. Fundador da Biomind, ele tinha organizado a venda da primeira empresa a produzir maconha para um governo nacional, a ICC Labs, da qual era executivo, à Aurora Cannabis. Após a transação, decidiu aplicar sua experiência com regulação de substâncias controladas ao efervescente ramo dos psicodélicos.

Buscou por três meses um pesquisador, até assistir a uma palestra do brasileiro. Para Antalich, 49, além da experiência com ayahuasca e depressão, Araújo se perfilou como encaixe perfeito para seus planos com a Biomind:

"Alguém que se alinhasse a um de meus objetivos principais, o acesso democrático a novos fármacos capazes de brindar uma segunda oportunidade a milhões de pacientes que perderam todo tipo de esperança com os tratamentos e fármacos existentes".

O Brasil deveria ser um dos países pioneiros em validar e reconhecer o valor da investigação científica em redor de diferentes substâncias psicodélicas nos últimos anos, defende: "Pensando só que várias plantas nativas do Brasil produzem esses princípios ativos psicodélicos deveria ser razão mais que suficiente para promover a ciência psicodélica e legislar nesse sentido."

Segundo o uruguaio, 1 bilhão de pessoas, um oitavo da população mundial, enfrenta algum tipo de transtorno de saúde mental, para as quais não surgiram inovações de tratamento nas últimas cinco décadas. "Lamentavelmente perdemos um tempo mais que valioso de investigação, porque as substâncias psicodélicas estavam incluídas na lista 1 [Schedule 1, rol de drogas proibidas capitaneado pelos EUA]."

Ele cita uma frase que ouviu de Araújo assim que o brasileiro firmou a parceria: "Há uma ilha desconhecida no oceano de novos fármacos [nos] esperando. Eu [Araújo] tenho o mapa, e a Biomind Labs, o barco para navegar as águas turbulentas e chegar à ilha".

Seriam três os pilares da estratégia perseguida pela empresa: ênfase nos pacientes, na pesquisa e na acessibilidade. Em outras palavras, empregar a ciência para desenvolver formulações e vias de aplicação a fim de ampliar a quantidade de pessoas desassistidas que possam se beneficiar com psicodélicos.

A Biomind segue a via convencional de desenvolvimento de fármacos, com testes clínicos destinados a cumprir os critérios exigidos por agências reguladoras, como FDA e Anvisa.

Isso requer muito investimento, que a companhia vai buscar no mercado de capitais do Canadá, onde está listada na bolsa de Toronto. Isso lhe permite levantar recursos também nos Estados Unidos. A empresa acaba de instalar um centro de operações no Campus Biomédico da Universidade de Cambridge, Reino Unido.

A propriedade intelectual, segundo Antalich, é outra peça importante dessa estratégia. A Biomind já apresentou 20 pedidos de patente em 15 meses (incluindo mescalina e 5-MeO-DMT).

Mas ele não vê risco de as solicitações serem questionadas por tratarem de substâncias de uso tradicional. É o que vem ocorrendo com empresas como a Compass Pathways, avançada em testes clínicos com psilocibina para depressão ora sob contestação.

"Nossa estratégia segue em direções totalmente opostas, nas quais o que realmente se protege são formulações inovadoras e sistemas de administração de fármacos", explica, e não a substância propriamente dita (a DMT, de resto, é endógena no cérebro humano). "Não protegemos moléculas nem novas entidades químicas desenvolvidas através da modificação das moléculas-mães psicodélicas."

O objetivo declarado é universalizar o uso independentemente da renda dos pacientes. Daí a necessidade de encaixar melhor o tratamento psicodélico na prática clínica, sem encarecê-la com horas e horas de acompanhamento especializado ao longo da duração da viagem.

"Em linha com nosso objetivo principal, acessibilidade, nos concentramos em encurtar o tempo de sessão requerido para a experiência psicodélica. Quanto mais prolongado, menos acessível se faz o tratamento."

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira"

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