Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Ayahuasca previne depressão induzida em saguis da UFRN

Chá da Amazônia mostra efeito profilático em animais isolados por 9 semanas

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São Paulo

O grupo de pesquisa psicodélica reunido em torno do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN) avançou mais um tanto na confirmação do potencial da ayahuasca contra depressão. Agora, mostrou com ajuda de saguis que o chá parece prevenir o estado depressivo, e não só tratá-lo.

Sagui da espécie Callithrix jacchus, pequena espécie de primata com tufos brancos de pelos
Sagui da espécie Callithrix jacchus - Michael Gäbler/Creative Commons

O trabalho da estudante de mestrado Maria Lara Porpino de Meiroz Grilo, orientada por Nicole Galvão-Coelho, do Centro de Biociências da mesma universidade, foi aceito para publicação no periódico Frontiers in Behavioral Neuroscience. O título, traduzido, reza: "Ação profilática de ayahuasca num modelo primata não-humano de comportamento semelhante a depressão".

O primata, no caso, são sagüis da espécie Callithrix jacchus. Galvão-Coelho usa há tempos esses macacos para simular um estado análogo à depressão em humanos e então testar o impacto da bebida no comportamento. Isso se faz anotando e quantificando reações como limpar-se (autogrooming), coçar-se ou beber quantidades menores de água adoçada (indicador de anedonia, ou incapacidade para o prazer).

A pesquisadora também coleta e analisa marcadores biológicos, substâncias como cortisol e BDNF (fator associado com formação de novas conexões nervosas), em busca de mecanismos fisiológicos das alterações de humor. No caso dos saguis do novo estudo, mediu-se o nível de cortisol (hormônio relacionado com estresse) nas fezes dos bichos, um método menos invasivo que tirar sangue.

No modelo de depressão, saguis são isolados de seus grupos familiares por várias semanas. Ficam estressados, e o cortisol sobe. Quando o estresse se torna crônico, com o passar das semanas solitárias, a produção do hormônio entra em pane, e os níveis começam a cair. O macaquinho perde interesse no líquido doce.

Medindo quanto da água adocicada eles bebem, antes e depois do isolamento, os pesquisadores obtêm uma quantificação objetiva do grau de estado análogo à depressão por eles enfrentado.

No experimento em causa, os animais observados por 13 semanas foram separados em três grupos. No primeiro, os saguis seguiram em convívio normal com seus parentes. No segundo, foram submetidos a isolamento e receberam alimentação normal. No terceiro, foco da pesquisa, ficaram isolados e receberam três doses de ayahuasca por um tubo que ia até o estômago (a chamada gavagem).

Esquema descritivo do experimento realizado na UFRN
Esquema descritivo do experimento realizado na UFRN - Nicole Galvão-Coelho et al.

Nos três casos, todos os animais foram observados por quatro semanas sem qualquer intervenção, só com anotação de comportamento e coleta de fezes, para estabelecer as linhas de base. Em seguida começou o isolamento de dois dos grupos, com e sem ayahuasca

A beberagem lhes foi dada três vezes, com intervalos de três semanas. A ideia era simular o regime observado em religiões da ayahuasca, como Santo Daime, UDV e Barquinha, cujos fiéis costumam tomar o chá a cada 15 dias. O espaçamento um pouco maior decorreu de cálculos sobre as diferentes taxas de metabolismo nas duas espécies de primatas, humana e não-humana.

Estudos observacionais anteriores com praticantes indicam que há menor incidência de depressão e outros transtornos entre ayahuasqueiros. Com animais se pode dar um passo a mais e provocar o estado depressivo de maneira controlada, separando múltiplos fatores culturais e emocionais que influenciam a mente humana e, portanto, os resultados observados.

Pois bem, com os sagüis da UFRN a hipótese de profilaxia se confirmou: no grupo que tomou ayahuasca, tanto o comportamento quanto os níveis de cortisol se provaram similares aos daqueles que permaneceram na companhia das famílias.

Ou seja, o cortisol se manteve em níveis adequados para um bicho isolado. E os micos ayahuasqueiros não perderam o interesse pela água açucarada, diferentemente dos isolados sem o chá, entre os quais o cortisol baixou demais e a anedonia se impôs.

"No artigo anterior, a gente tinha testado uma dose aguda de ayahuasca, que foi mais eficaz que a nortriptilina, um [antidepressivo] tricíclico, para reverter o comportamento depressivo e a alteração do cortisol", conta Galvão-Coelho.

"Aí a gente teve a ideia de oferecer a ayahuasca durante o protocolo de indução de depressão. E vimos esse que é o efeito profilático: deve haver algum mecanismo de aumento de resiliência, que faz com que esses animais tenham uma resposta ao estresse menos grave, menos crônica, e não desenvolvam o quadro depressivo."

A equipe da UFRN tem larga experiência no estudo da ayahuasca. Em 2018, apresentou pioneiro ensaio clínico duplo cego controlado por placebo a testar uma substância psicodélica contra depressão. Outro estudo do Imperial College de Londres, em 2016, havia registrado bons resultados com psilocibina de cogumelos "mágicos" e ganhou mais atenção, mas não contava com grupo de controle com placebo.

Desde então o grupo potiguar produziu vários artigos sobre medidas com humanos e sagüis. Mais recentemente, montou um teste clínico para depressão com um dos compostos psicoativos da ayahuasca, a dimetiltriptamina (DMT), iniciado em 2022.

Neste experimento, estão comparando efeitos terapêuticos da DMT inalada com injeções intramusculares da substância, como relatado no caderno Ilustríssima da Folha. Parte da DMT ora utilizada no ICe é extraída da árvore nordestina jurema-preta (Mimosa tenuiflora), base do vinho da jurema consagrado em rituais de Catimbó ou Jurema Sagrada, e não do arbusto chacrona com que se prepara a ayahuasca.

Isso permitiria abreviar as sessões de dosagem para poucos minutos ou algumas dezenas deles, em comparação com mais de quatro horas da "força" em que as pessoas entram quando tomam ayahuasca por via oral. O objetivo é baratear eventuais tratamentos psicodélicos antidepressivos, caso venham a ser aprovados por agências reguladoras.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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