Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Editorial condena ciência psicodélica de má qualidade

Crítica mais pesada atinge Robin Carhart-Harris, estrela da pesquisa na área

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São Paulo

O periódico especializado Psychological Medicine traz nesta quarta-feira (19) artigo contra a voga de estudos do chamado renascimento psicodélico. Como ela está na raiz do surgimento deste blog dois anos atrás, nada mais justo do que reproduzir aqui as críticas incomumente ácidas.

O texto tem assinaturas de Wayne D. Hall, do Centro Nacional de Pesquisa sobre Uso de Substâncias na Juventude da Universidade de Queensland, em Brisbane (Austrália), e de Keith Humphreys, da área de Ciências Psiquiátricas e Comportamentais da Universidade Stanford, em Palo Alto (EUA). Seu alvo central é Robin Carhart-Harris (RCH), da Universidade da Califórnia em São Francisco.

Pesquisador Robin Carhart-Harris, de jaleco branco, segura seringa à frente do rosto com mãos cobertas por luvas roxas; à direita, texto em inglês apresenta documentário "Medicina Mágica"
Cartaz do documentário "Medicina Mágica" destaca o pesquisador Robin Carhart-Harris - Reprodução

Quem se interessa por efeitos terapêuticos de compostos alteradores da consciência provavelmente já topou com o nome de RCH em reportagens ou entrevistas. Ele é figura assídua na cobertura dessa renascença, como neste espaço.

RCH se tornou celebridade por seus estudos pioneiros com psilocibina de cogumelos ditos "mágicos" para depressão e imagens do cérebro sob influência de psicodélicos, quando ainda no Imperial College de Londres. Também publica trabalhos com modelos que tentam esclarecer o mecanismo por trás dos alegados benefícios psíquicos, como o conceito de aumento da entropia (desordem) cerebral em mentes acometidas por excessiva rigidez.

Hall e Humphreys (H&H) destacam justamente um artigo de abril passado da equipe do Imperial sobre "desmodularização" de redes cerebrais como explicação para o alegado efeito antidepressivo rápido. As medidas que caracterizariam esse processo vieram de imagens cerebrais de participantes em outro estudo, de um ano atrás, também criticado no editorial.

Seguindo a ordem cronológica, primeiro as críticas ao trabalho de 2021, publicado no prestigiado New England Journal of Medicine (NEJM). Nele se comparava a psilocibina com o antidepressivo escitalopram (Lexapro).

"Como leitores e revisores de longa data do NEJM, familiarizados com seu padrão de manter ‘um processo rigoroso de revisão por pares e de edição’ que almeja impedir que ‘resultados exagerados alcancem médicos’, nos perguntamos por que os editores publicaram um ensaio de fase 2 com baixa potência [59 participantes], de curto prazo [seis semanas], que não dava apoio para quaisquer conclusões clínicas", escrevem H&H.

A afirmação final foi retirada do próprio artigo no NEJM. A ausência de significância estatística na diferença de correlação entre o resultado primário (recuo numa escala de depressão) e escitalopram ou psilocibina, reconhecia-se, não permitia inferir afirmar superioridade do psicodélico. Os autores, no entanto, deram destaque para outra dezena de medidas que, supostamente, reforçariam o benefício terapêutico maior da psilocibina.

Ao reportar aqui tal artigo, usei o título "Psicodélico empata com antidepressivo e pode ganhar partida nos pênaltis". Um recurso para não deixar de registrar que o resultado era parcialmente negativo para RCH.

H&H atacam ainda o segundo artigo, no não menos prestigioso periódico Nature Medicine, igualmente noticiado aqui. O grupo do Imperial usou imagens da mesma amostra de pacientes deprimidos, mas comparados com outra escala de depressão, não a do estudo na NEJM. Obviamente, era uma escala mais favorável para a correlação.

Página com resumo em inglês de artigo científico com cabeçalho em vermelho da revista Nature Medicine
Fac-símile do resumo de artigo sobre psilocibina e depressão no periódico Nature Medicine - Reprodução

Outras falhas metodológicas foram apontadas nesse segundo trabalho. Entre as críticas mais contundentes estavam as de Manoj Doss, da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore (EUA). Acusações nada comedidas entre Doss e Carhart-Harris ganharam as redes sociais, inclusive.

"Críticos do estudo destacam que outros periódicos [do grupo] Nature publicaram artigos explicando as falhas nessa forma de inferência estatística e mostrando como isso contribuiu para o fracasso na replicação dos achados de muitos estudos de neuroimagem", reparam H&H.

"Apesar desses problemas graves, esse estudo saiu num periódico médico de ponta que não tem histórico de aceitar trabalhos comparavelmente limitados sobre outras terapias." Para piorar as coisas, ambos os artigos obtiveram larga repercussão na imprensa leiga, dada a fama de RCH.

"Só os melhores desses estudos deveriam ser publicados em periódicos de ponta, e todos eles deveriam ser descritos para o público e a imprensa com acuidade meticulosa", concluem H&H.

Para aperfeiçoar a ciência psicodélica, eles defendem que se destinem recursos públicos para a pesquisa clínica dessas substâncias promissoras. Isso hoje quase não acontece, com a maior parte dos fundos provenientes de instituições filantrópicas privadas ou indivíduos.

Tal é a força do estigma a pesar sobre eles por sua associação com a contracultura e por terem se tornado o inimigo número 1 na Guerra às Drogas deflagrada pelos EUA na década de 1970. No entanto, a bandeira proibicionista poderá cair por terra com os primeiros testes clínicos de fase 3 com centenas de doentes, como o que está sendo concluído para tratar transtorno de estresse pós-traumático com MDMA, e a provável autorização da FDA para uso em psicoterapia assistida.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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