Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Boas e más novas do front psicodélico

Investidores enfrentam dificuldades, mas pesquisas seguem em marcha batida

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Diagramas mostram comunicação entre áreas cerebrais sem (esq.) e com ayahuasca (dir.)
Diagramas mostram comunicação entre áreas cerebrais sem (esq.) e com ayahuasca (dir.) - Reprodução/Journal of Physics:Complexity

Há quem diga que estourou a bolha de entusiasmo com avanços da ciência psicodélica, em seu ressurgimento para a medicina há menos de duas décadas. Antes da Guerra às Drogas, cerca de 40 mil pessoas chegaram a ser tratadas com compostos alteradores da consciência, mas entre 1970 e 2000 os estudos clínicos refluíram sob o tacão proibicionista, para retornar com força a partir de 2010.

Empresas e governos estaduais dos EUA enfrentam dificuldades neste ano, é verdade, para reabilitar substâncias como psilocibina, DMT, MDMA e LSD na condição de medicamentos. Mas a pesquisa segue seu curso metódico para torná-los alternativas terapêuticas contra transtornos como depressão e estresse pós-traumático.

Se for para privilegiar más notícias, basta voltar o olhar para startups e investidores do setor psicodélico, que até 2021 estavam em ebulição. De lá para cá, vários baldes de água fria: a atai Life Sciences, uma gigante do ramo, cortou 30% de pessoal e viu suas ações recuarem de US$ 5,60 para US$ 1,20; na Cybin, corte de 15% e recuo de US$ 1,14 a US$ 0,41; na MindMed, de US$ 19,95 a US$ 2,85.

O Psychedelic Invest Index caiu 15,13% nos últimos 12 meses. Estima-se que sobreviverão no mercado apenas 8 de cada 10 startups.

Foi à bancarrota a Synthesis, da Holanda que planejava abrir uma clínica de psilocibina em Oregon, estado americano onde cogumelos Psilocybe cubensis se tornaram legais neste ano. Ficaram na mão duas centenas de alunos matriculados em seu curso para formar facilitadores de psilocibina.

Na segunda quinzena de março, fecharam as portas unidades em 13 estados americanos de duas grandes redes de tratamento com cetamina, Ketamine Wellness Centers e Field Trip. O analgésico não é um psicodélico clássico, mas o efeito dissociativo do uso fora de bula (off-label) tem mostrado bons resultados contra depressão.

A Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, em inglês) teve de dar um cavalo de pau e está oferecendo a venda indireta de ações de seu braço comercial Maps PBC. Em 37 anos de existência, a ONG levantou com filantropos US$ 140 milhões (mais de R$ 700 milhões) para financiar estudos clínicos que puseram a droga MDMA às portas de aprovação pela FDA para tratar estresse pós-traumático.

Agora, no entanto, o fundador Rick Doblin pena para conseguir recursos necessários à implementação do tratamento no mercado, assim que a licença da FDA sair, possivelmente em 2024. Precisou recorrer à estratégia de pedir empréstimo que, se não forem ressarcidos, darão a investidores o direito de receber ações da Maps PBC em troca.

As más novas na esfera corporativa são muitas, mas podem não representar mais que acomodação previsível num mercado efervescente em promessas exageradas de lucros. Em paralelo, nos campos legal e científico, as coisas não vão nada mal.

Cogumelos multicoloridos
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

Além de Washington DC, Oregon e Colorado, que descriminalizaram os cogumelos psicodélicos P. cubensis, outros 15 estados americanos preparam ou cogitam legislações no sentido liberalizante, como Califórnia, Flórida e Nova York. Várias cidades já deram passos na mesma direção, assim como os governos da Austrália e do Canadá. O Congresso americano pode facilitar a reclassificação de psicodélicos.

Verdade que estão demorando as licenças para abrir centros de atendimento com psilocibina em Oregon, onde o governo estadual começou a receber pedidos em janeiro. O processo é burocrático e caro, o que deve restringir muito o acesso às sessões de preparação, dosagem e integração, pacote que poderá custar alguns milhares de dólares. Mas surgiu notícia animadora: a secretaria de saúde (OHA) concedeu à Satori Farms a primeira licença para cultivar os fungos psicodélicos.

A lista de universidades que mantêm centros ou grupos importantes de pesquisa com psicodélicos, compilada pelo site Blossom, é impressionante: Johns Hopkins, Imperial College Londres, Arizona, Califórnia em San Diego, Berkeley, Davis e São Francisco, NYU, Harvard, Stanford, Yale, Texas em Austin, Nebraska, Saúde e Ciência de Oregon. Washington State. Minnesota, Columbia, Duke, Emory, Michigan, Wisconsin em Madison, Toronto, USP, UFRN, Buenos Aires, Basileia, Maastricht, Leiden, Utrecht, Zurique, Manchester, Charité Berlim, Copenhague, University College Londres, King’s College Londres, Aarhus, Monash, Sydney...

Ufa. Quem estranhar a presença de instituições brasileiras na lista saiba que há mais, como se pode conferir aqui. A informação mais recente é que a Unifesp recebeu da empresa Bienstar uma primeira parcela de financiamento para iniciar estudos clínicos com ayahuasca e cogumelos para alcoolismo e tabagismo, respectivamente.

Novos artigos sobre saem toda hora, inclusive brasileiros. O grupo da UFRN, por exemplo, publicou no último dia 15, com colaboradores de Alemanha, Espanha, Irlanda e Itália, uma análise sobre como se intensifica a conversa entre áreas e redes do cérebro após a ingestão de ayahuasca. Desse estudo provém a linda e eloquente imagem que abre este post.

O principal composto psicodélico do chá usado ritualmente nas igrejas Santo Daime, União do Vegetal (UDV) e Barquinha é a dimetiltriptamina (DMT). O alcaloide esteve na origem, também, mas puro e injetado em 20 voluntários, do estudo mais comentado das últimas semanas, realizado pelo Imperial College de Londres.

Oito miniaturas coloridas de cérebro em diferentes ângulos
Imagens do cérebro sob efeito de DMT captadas por Chris Timmermann, do Imperial College Londres - Reprodução PNAS

O chileno Christopher Timmermann é o primeiro autor do artigo publicado dia 20 no periódico da Academia Nacional de Ciências dos EUA, PNAS, sob o título "Efeitos da DMT no Cérebro Humano Avaliados via EEG-fMRI". Na equipe estão também as celebridades David Nutt e Robin Carhart-Harris, que levaram o Imperial College à vanguarda da pesquisa psicodélica.

Eles combinaram sinais elétricos cerebrais captados por eletroencefalografia (EEG) com imagens de ativação neuronal obtidas com ressonância magnética funcional (fMRI). Com isso, detectaram que a profunda alteração da consciência sob DMT abrange o aumento da conectividade funcional global do cérebro acompanhado de desintegração de redes neurais, reforçando o modelo do cérebro entrópico de Carhart-Harris para descrever o efeito psicodélico.

A ciência psicodélica vai bem, obrigado, embora as tentativas de monetizá-la por meio de startups, patentes, IPOs e corporações estejam tropeçando. Talvez seja melhor caminhar devagar, mesmo, com passos firmes apoiados em dados clínicos e tecnologias de uso consagradas há séculos por povos indígenas, em lugar de comprar pelo valor de face o interesse capitalista no ressurgimento psicodélico.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

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