Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente drogas

Caverna espanhola tem indícios de uso ritual de drogas há 2.800 anos

Análise de cabelo atribuído a xamã detecta consumo de plantas com escopolamina, como trombeta

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Foto e desenhos mostram detalhes de tampa de recipiente com cabelos humanos achado em Menorca, Espanha
Foto e desenhos mostram detalhes de tampa de recipiente com cabelos humanos achado em Menorca, Espanha - Reprodução/Scientific Reports

O recurso a estados alterados da consciência em rituais, com ou sem ayahuasca, álcool, cogumelos psicodélicos ou maconha, já foi documentado em 9 entre 10 povos originários estudados pela antropóloga Erika Bourguignon. Surge agora comprovação direta do emprego de psicoativos na Europa, 2.800 anos atrás, numa caverna da ilha de Menorca, Espanha.

A descoberta do grupo de Elisa Guerra-Doce trouxe rara evidência direta de alcaloides como escopolamina, atropina e efedrina em fios de cabelo. Mais comum é encontrar vestígios de plantas ou bebidas psicoativas em utensílios, não em amostras humanas.

Guerra, da Universidade de Valladolid, trabalhou com pesquisadores da Universidade Autônoma de Barcelona e da Universidade do Chile. O trabalho "Evidência direta do uso de múltiplas drogas em Menorca na Idade do Bronze pela análise de cabelo humano" saiu no periódico Scientific Reports.

"Estou interessada em estudar sociedades com uma abordagem holística, e o uso de substâncias psicoativas (vegetais e bebidas fermentadas) oferece uma enorme quantioade de de informação sobre comunidades do passado: ambiente, tecnologia, práticas religiosas e diferenciação social, entre outras questões", afirmou Guerra em rápida entrevista por email.

Na interpretação dos arqueólogos, os fios de cabelo encontrados e analisados devem ter pertencido a um sacerdote ou xamã. Eles não foram encontrados na nave principal da caverna Es Càrritx, que abriga restos mortais de 210 indivíduos depositados durante seis séculos, mas numa câmara separada.

Estavam em um dos três compartimentos de vaso de madeira de oliveira, cuja tampa aparece na imagem da abertura deste texto. Os fios de 13 cm haviam sido cortados e tingidos de vermelho, indícios de que a deposição elaborada teria servido para preservar restos de pessoa especial, possivelmente um xamã que consumia de modo continuado drogas para fins curativos ou divinatórios.

"Alguns indivíduos em Es Càrritx receberam um tratamento mortuário especial, como indicado pelo fato de que o número de tubos contendo mechas de cabelo é muito menor que o número de pessoas enterradas", explicou Guerra, justificando a conclusão sobre xamãs. "Considerando que não havia diferenciação social naquele tempo, pensamos que esses indivíduos podem ter tido status especial ligado a seu caráter religioso."

A tampa do recipiente guarda traços de inscrições circulares semelhantes às encontradas em artefatos de outras culturas. Círculos concêntricos e espirais são usualmente interpretados como referências a olhos e visões. O vaso tinha três perfurações para cordões de transporte e de prender a tampa.

"Considerando a toxicidade potencial dos alcaloides encontrados nos cabelos, seu manuseio, uso e aplicações representavam conhecimento altamente especializado", argumenta o artigo. "Tal conhecimento era tipicamente detido por xamãs, que eram capazes de controlar os efeitos colaterais das drogas vegetais em meio ao êxtase que tornava possíveis diagnósticos e divinações."

Os cabelos passaram por análise toxicológica como a realizada hoje em dia para detectar uso de substâncias proibidas. Ela revelou traços dos alcaloides escopolamina, atropina e efedrina em concentração indicativa de uso contínuo por pelo menos um ano antes da morte do indivíduo.

A efedrina, estimulante que costuma aparecer em exames antidoping, deve ter origem na ingestão do arbusto Ephedra fragilis, presente em Menorca. A atropina e a escopolamina provavelmente resultaram da ingestão das plantas Datura stramonium, Hyoscyamus albus e Mandragora automnalis, que também ocorrem na ilha.

Flor branca em meio a folhas verdes pontudas
Flor da planta alucinógena estramônio (Datura stramonium - Andrew Gagg/Creative Commons

O estramônio tem vários nomes comuns relacionados a delírios e bruxaria, como castanheiro-do-diabo e erva-dos-feitiços. Pode também ser chamada de trombeta, designação que compartilha com a igualmente alucinógena Brugmansia suaveolens, nativa do Sudeste brasileiro e usada ritual ou recreativamente por aqui e noutras partes da América.

Guerra diz que nunca fez pesquisa arqueológica no Brasil ou outro país do continente, mas adoraria. "A variedade da flora psicoativa nas Américas é estonteante, e povos indígenas vêm incorporando plantas psicoativas em suas práticas religiosas por séculos."

A convergência no emprego de substâncias modificadoras da mente entre populações distantes três milênios e milhares de quilômetros entre si reforça a hipótese de que se trata de um impulso universal, como defende o psicofarmacologista Ronald Siegel.

Quando fala em universal, Siegel quer dizer mais que transcultural –biológico, mesmo. Uma necessidade básica, como comer, beber e fazer sexo: "Quase todas as espécies de animal se engajam na busca natural de intoxicantes", escreve no prefácio para a reedição em 2004 do livro "Intoxication" (1989).

"Este ‘quarto impulso’ [drive] é uma parte natural de nossa biologia, que cria uma demanda irreprimível por drogas", afirma. "Em certo sentido, a guerra às drogas é uma guerra contra nós próprios, uma negação de nossa própria natureza."


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Este texto foi modificado em 10 de abril para incorporar explicações enviadas por Elisa Guerra nessa data.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

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