Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Psicodélicos indicam pistas para criar antidepressivos inovadores

Artigo sugere primazia de conexões neuronais, não da 'viagem', contra depressão

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Neurônio piramidal digitalizado na plataforma Neuroglancer
Neurônio piramidal digitalizado na plataforma Neuroglancer - Reprodução/Neuroglancer

O renascimento das substâncias psicodélicas para a medicina, que tem como carro chefe seu efeito antidepressivo, corre o risco de resvalar para um desfalecimento. Estudo da Universidade de Helsinque (Finlândia) dá nova vida à estratégia de desenvolver medicamentos, a partir deles, que abram mão da alteração de consciência, a famigerada "viagem".

O grupo de Eero Castrén conta com a participação de Plinio Casarotto, formado em farmácia pela Universidade Federal do Paraná. Participaram do estudo publicado semana passada no periódico Nature Neuroscience, também, os brasileiros Caroline Biojone e Cassiano Diniz.

Seus experimentos com roedores sugerem que o benefício terapêutico vem mais da neuroplasticidade (formação de novas conexões cerebrais) induzida pelos psicodélicos, e não tanto da experiência psicodélica propriamente dita. Mais que isso, ainda: os dois efeitos parecem independentes um do outro.

Vários testes clínicos com a psilocibina de cogumelos "mágicos" e com a dimetiltriptamina (DMT) da ayahuasca vêm indicando bons resultados contra depressão. Antes da proibição na guerra às drogas dos anos 1970, essas substâncias e outras como o LSD eram investigados para tratar esse transtorno e outros, como dependência química, mas sob a repressão o tema se tornou kriptonita.

Nas duas últimas décadas, esses estudos retornaram e passaram a empregar técnicas de investigação mais refinadas, como ensaios duplo-cegos, biologia molecular e imagens do cérebro. O grupo com epicentro em Helsinque se concentrou sobre receptores em neurônios de camundongos para dois compostos, serotonina e BDNF.

A serotonina, já chamada de "hormônio da felicidade", atua sobre receptores da classe 5HT. Psicodélicos se assemelham a ela e se encaixam bem, especificamente num deles, o 5HT2a, tido como o desencadeador da alteração da consciência e dos visuais que caracterizam viagens lisérgicas e quetais.

BDNF é a sigla em inglês de fator neurotrófico derivado do cérebro, atuante na formação de conexões entre neurônios. Esta neuroplasticidade é tida como mecanismo bioquímico provável por trás do efeito mental terapêutico de psicodélicos, na medida em que conexões novas abririam caminhos alternativos para reprocessar traumas e ideias negativas.

O time finlandês já havia demonstrado que antidepressivos convencionais como a fluoxetina, assim como o anestésico cetamina (ou ketamina), que tem sido usado contra depressão, atuam sobre o receptor de BDNF conhecido como TrkB. Mas essas drogas não são psicodélicas em sentido forte, na medida em que não atuam sobre o receptor 5HT2a.

Desenhos de cogumelos em cores psicodélicas sobre fundo preto e traços brancos delineando um rosto humano no canto inferior esquerdo
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

A novidade do estudo na Nature Neuroscience está em revelar que os psicodélicos LSD e psilocibina não só agem sobre o TrkB, também, como o fazem com mais eficiência. A afinidade química entre a chave (psicodélico) e a fechadura (receptor), no caso do par LSD-TrkB, chega a ser mil vezes maior que a da fluoxetina ou a da cetamina.

Além disso, os ensaios mostraram que essa afinidade independe de sua ação sobre o receptor 5HT2a. Em outras palavras, em princípio seria possível obter a plasticidade desejada com medicamentos inovadores que não lançariam o paciente numa viagem psicodélica –uma alternativa, talvez, para quem não quer ter essa experiência, ou não pode (como pessoas com propensão a surtos psicóticos).

"Nossos achados abrem uma avenida para o desenho baseado em estruturas de ligantes seletivos para TrkB de alta afinidade, que tenham ação antidepressiva rápida e de longa duração, mas sejam potencialmente desprovidos de atividade alucinogênica", escreveram os autores noutra seção do periódico.

"As diferenças na maneira como essas substâncias se ligam e estabilizam o receptor TrkB fornecem uma nova direção para investigações experimentais, com o potencial de levar ao desenvolvimento de novos medicamentos que combinem a alta eficácia dos psicodélicos com a segurança dos antidepressivos convencionais", concorre o neurocientista brasileiro Stevens Rehen, da UFRJ e do Instituto Usona (Wisconsin, EUA), ao comentar o artigo, no qual não teve participação.

Tais drogas poderiam também tornar-se medicamentos para outros transtornos psiquiátricos e neurológicos, tais como abuso de substâncias ou derrame, nos quais plasticidade aumentada poderia ser benéfica, acrescentam Castrén e seus colaboradores. Ressalvam, contudo: "Não está claro se uma separação similar entre os efeitos antidepressivo e alucinogênico do LSD está presente em humanos".

Com essa ressalva sobre espécies concorda, por outras vias, a fisiologista Nicole Galvão-Coelho, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que também não participou do artigo. A correlação de níveis de BDNF com resposta antidepressiva é uma explicação muito em voga, mas ela assinala que isso nem sempre acontece e que há grande distância entre modelos animais de depressão e a manifestação exuberante do transtorno em pessoas.

Ela tem dúvida sobre o potencial terapêutico de futuros parapsicodélicos para pacientes deprimidos graves, com transtorno resistente a tratamento e muitos traumas complexos. Nesses casos, a experiência psicodélica e a terapia subsequente permaneceriam importantes para o resultado clínico, acredita.

Casarotto, que no meio tempo deixou a pesquisa de bancada em Helsinque e hoje trabalha como editor científico no grupo Cell Press, conta que receava trabalhar com receptores de psicodélicos porque havia muitos grupos atuando no campo. No entanto, depois de publicar em 2021 provas de que antidepressivos clássicos tinham baixa afinidade para TrkB (uma ideia de Biojone, com quem Casarotto é casado), o grupo tinha uma plataforma competitiva para investigar outras moléculas, como psicodélicos.

Apesar de os dados apontarem na direção de "parapsicodélicos" (compostos inspirados neles, mas incapazes de causar a clássica alteração de consciência), a estratégia de David Olson na Universidade da Califórnia e por Cao Dongmei e Wang Sheng no Instituto de Bioquímica e Biologia Celular de Xangai, Casarotto vê a proposta com cautela, a mesma que reserva para a noção de que a "viagem" e sua integração por meio de psicoterapia sejam essenciais para o ganho terapêutico.

"É muito prematuro assumir isso agora", ressalva. "Extrapolando a partir dos nossos dados, [moduladores de TrkB] não têm efeito per se, eles precisam da atividade neuronal e, portanto, de inputs externos. Mas entre o que os dados indicam e a conclusão de que a terapia é essencial existe uma grande diferença."

Para o brasileiro, estudos clínicos sobre o efeito antidepressivo de psicodélicos sofrem muito com vieses. Entre outras razões, por ser muito difícil manter o sistema duplo-cego, padrão ouro dos ensaios clínicos –os participantes quase sempre sabem se tomaram placebo ou não.

"Eu vejo discussões muito apaixonadas, especialmente no Twitter, sobre esse assunto. Paixão, ideologia e ciência não combinam. Precisamos de mais estudos, bem desenhados, buscando responder as questões relevantes uma a uma e, se não der no que gostaríamos, paciência."

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Capa do livro Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira (Fósforo Editora)
Capa do livro Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira (Fósforo Editora) - Arquivo Pessoal

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