Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente saúde mental

Como sobreviver ao inverno psicodélico

No limiar da consagração, faltam recursos para deslanchar uso clínico

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Cena do filme 'A Sociedade da Neve', de Juan Antonio Bayona
Cena do filme 'A Sociedade da Neve', de Juan Antonio Bayona - Divulgação

Por recomendação do psiquiatra Luís Fernando Tófoli, assisti ao filme "A Sociedade da Neve", muito bom. Ocorreu-me então um paralelo delirante com o chamado "inverno psicobiomédico", como se apelidou a crise global no financiamento de pesquisas psicodélicas, mas cabe esclarecer que estava sóbrio quando surgiu a associação.

A película narra o acidente que derrubou um avião da Força Aérea do Uruguai nos Andes em 1973. Havia 45 passageiros a bordo, jogadores, familiares e torcedores do time de rúgbi Old Christians. Só 16 sobreviveram a 72 dias nas montanhas geladas, porque comeram carne humana.

Havia vários cristãos devotos no grupo, como indica o nome da equipe. De início respeitaram a interdição universal à antropofagia pecaminosa. Sucumbiram, em boa hora, à própria humanidade, superando o dogma para abraçar a vida.

O que o movimento psicodélico precisa fazer para atravessar o atual inverno? Alguma providência transgressora e audaciosa em vista, que lhe permita ultrapassar os obstáculos da regulamentação sem morrer de inanição pelo caminho?

Até aqui, a fé no Deus Capital manteve vivos os pesquisadores e psiconautas que se ergueram das catacumbas a que foram relegados pelo proibicionismo da Guerra às Drogas para reviver a tradição reprimida de experimentação com psicodélicos. Capital filantrópico, de um lado, e capital de risco, do outro, mas as duas fontes ora estão a congelar-se.

Dois textos recentes dão ideia da espessura do gelo sobre o mar de promessas de cura psicodélica. Rick Doblin e Christian Angermayer, cada um a seu modo, pregam otimismo e profetizam uma nova era, renovando sua fé no capitalismo para levar a salvação da saúde mental às massas.

Ex-hippie que manteve acesa a chama por 37 anos na Maps (Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos), Doblin faz contrição na mensagem que circulou sobre a entrada de US$ 100 milhões aplicados por investidores de risco no braço empresarial Maps PBC, criado em 2014, que passou a se chamar Lykos Therapeutics.

Logotipo em preto e azul da palavra Lykos
Logotipo da empresa Lykos Therapeutics - Reprodução

O interesse mercadológico na Maps recai sobre a licença que ela espera obter para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) com psicoterapia assistida por MDMA (ecstasy). Testes clínicos de fase 3 foram realizados, e a agência de fármacos norte-americana FDA pode autorizar esse protocolo ainda neste ano ou no próximo.

"A Maps deu as boas-vindas a investidores quando percebemos que a maior perda de benefício público viria se a terapia assistida por MDMA para TEPT não fosse aprovada e disponibilizada pela FDA devido à falta de recursos", escreveu Doblin. Para ele, a Maps foi vítima do nosso próprio sucesso:

"Ao longo de décadas de filantropia, quando não havia financiamento governamental/público e os investimentos privados não faziam sentido financeiro, dados os estigmas e obstáculos políticos, os doadores da Maps ajudaram a criar o contexto cultural e o renascimento psicodélico que incubou centenas de empresas psicodélicas com fins lucrativos, muitas negociadas no mercado. Inadvertidamente, a ascensão de empresas com fins lucrativos tornou mais difícil angariar doações adicionais."

Em fevereiro a FDA decidirá se aceita ou não fazer o exame dos dados apresentados pela Maps PBC/Lykos. Caso aceite, poderá revisá-los em seis meses (via prioritária) ou dez meses (padrão). Em resumo, com sorte a decisão pode sair ainda em agosto.

O passo seguinte será da agência de combate a drogas (DEA), que por lei tem 90 dias, após decisão da FDA, para tirar MDMA da lista mais restrita de substâncias controladas, o famigerado Schedule 1. Enquanto isso, a Lykos vai se dedicar a erguer uma estrutura comercial para oferecer o serviço terapêutico.

A Maps é atualmente o maior acionista da Lykos, com pouco menos da metade das ações, explica a carta de Doblin, e tem direito a voto qualificado, na proporção de dez para um. Além disso, retém a prerrogativa de nomear seis dos oito membros do conselho de administração, sendo Doblin um deles, "para ajudar a garantir que a Lykos inclua considerações de benefício público em todas as decisões".

A Maps cedeu o controle diário da gestão para a Lykos e seu conselho de administração, mas Doblin diz que a ONG garantirá que os incentivos e dividendos estejam ligados a métricas de benefício público. Para evitar conflito de interesses, ele próprio não terá ações da Lykos.

A contrição de Doblin inclui também admitir um fracasso: "Meu sonho era desenvolver uma terapia assistida por MDMA inteiramente com fundos filantrópicos", escreveu. A empresa Maps PBC teria permanecido integralmente sem fins lucrativos como propriedade de organização idem. Essa seria a estrutura ideal da primeira terapia assistida por psicodélico, "num momento da história em que o mundo está em chamas".

"Não consegui inspirar filantropos suficientes para doar os milhões e milhões de dólares necessários para obter a aprovação da FDA e construir a infraestrutura necessária para acesso dos pacientes, especialmente porque havia muitas oportunidades de investimento recentemente criadas no ecossistema psicodélico."

Christian Angermayer, da Atai Life Sciences, destacado investidor em startups psicodélicas, nunca subscreveu a ojeriza de ex-hippies a lucros obtidos da saúde mental alheia e a patentes sobre substâncias que a humanidade usa há milênios. Seu objetivo declarado é ganhar dinheiro, ao mesmo tempo em que estaria ajudando a resolver "um dos maiores desafios da humanidade" –a crise de saúde mental.

Numa correspondência veiculada no LinkedIn, Angermayer afirmou: "Sou um investidor na Atai não apenas por minha convicção de que terá retorno financeiro, mas porque acredito em tornar o mundo um lugar melhor e mais feliz". Em pleno inverno psicodélico, ele enverga a camisa leve do otimismo na tentativa de convencer outros investidores a caminhar consigo.

Angermayer precisa deles tanto quanto Doblin. Ações da Atai, fundada em 2018, chegaram a valer quase US$ 20, mas tiveram queda de 89,9% em cinco anos e despencaram a US$ 1,04, atingidas em cheio pela nevasca psicodélica. Apesar disso, o investidor alemão pinta um róseo alvorecer psicodélico para 2024: "Acredito firmemente que o mercado de biotecnologia retornará com força e entusiasmo".

O empresário lista várias razões para investir na companhia: as ações da Atai estão com preço baixo; acaba de adquirir mais de um terço da empresa Beckley PsyTech por US$ 50 milhões; o portfólio de investimentos agora cobre os cinco principais psicodélicos (psilocibina, DMT, 5-MeO-DMT, MDMA e ibogaína); está focada em psicodélicos de ação rápida e curta, mais adequados para adoção na prática clínica.

"Pessoalmente, acredito que, uma vez aprovado [o tratamento com psicodélicos], a penetração no mercado provavelmente superará de modo significativo as estimativas, impulsionada por resultados excepcionais com doentes e por um movimento apaixonado em defesa dos pacientes."

Angermayer marcou um ponto a favor neste começo de ano. Suas ações subiram rapidamente para US$ 2 após a aquisição da Beckley e o anúncio de que o composto EMP-01, uma variação de MDMA, teve bons resultados de segurança em estudo de fase 1 com 32 voluntários.

O EMP-01 é uma substância em que está presente só uma das duas formas espelhadas (enantiômeros) da molécula de MDMA, no caso, a orientada para a direita. Outros testes clínicos usam a versão mesclada (racêmica), contendo os dois enantiômeros.

É uma estratégia para alegar inovação e obter propriedade intelectual. Já foi seguida pela farmacêutica Janssen quando usou um dos enantiômeros da velha droga dissociativa e anestésica cetamina em formulação nasal para tratar depressão, o medicamento Spravato. Aliás, a Beckley PsyTech, recém-adquirida, testa uma fórmula intranasal para 5-MeO-DMT.

Angermayer enxerga três contingentes sucessivos na retomada da biomedicina pelos psicodélicos e se jacta de estar presente nos três: 1. Pioneiros, como o MDMA da Maps (da qual é doador) e como a psilocibina da empresa Compass Pathways (na qual é investidor); 2. Curta duração, como a 5-MeO-DMT nasal da Beckley; 3. Compostos totalmente novos, para reduzir efeitos adversos e melhorar eficácia, como EMP-01.

Quadro preto com moléculas no portfólio da empresa Atai
Imagem sobre portfólio da Atai publicada por Christian Angermayer - Reprodução

Chamar de inovador o enantiômero de uma substância sintetizada pela primeira vez em 1912, como o MDMA, é discutível. Mas assim procedem capitalistas raiz, buscando formas de se apropriar e lucrar privadamente com substâncias há muito conhecidas, seja psilocibina de cogumelos, DMT da ayahuasca, 5-MeO-DMT do sapo-do-rio-colorado ou ibogaína de um arbusto africano.

O empresário psicodélico aplaudiu a transformação da Maps PBC em Lykos Therapeutics, que o verdadeiro pioneiro Rick Doblin considera fracasso pessoal. "Esse é o modelo necessário para trazer novos tratamentos potencialmente transformadores aos pacientes com sucesso, segurança e rapidez", diz Angermayer.

É a fé no poder do dinheiro. Talvez o investidor tenha razão e rezar pelo advento do capital seja a única esperança para sobreviver ao desastre de mercado que encalhou o avião psicodélico na geleira do inverno psicobiomédico.

Resta aos outros, como os ex-hippies da Maps, voltar-se para as experiências comunitárias que sempre foram a marca do uso tradicional de psicodélicos. Como escreveu Doblin em sua carta:

"Enquanto a Lykos se concentra no acesso dos pacientes no mundo ocidental, a Maps irá concentrar-se na investigação humanitária com MDMA em todo o mundo, em áreas com elevada prevalência de traumas e poucos recursos. Exploraremos a terapia de grupo com curandeiros locais e conduziremos pesquisas acadêmicas sobre MDMA para resolução de conflitos e terapia de casais."

Pode não ser tão ousado quanto comer carne fresca de amigos recém-falecidos, mas não deixa de ser iconoclasta perante a religião do capital: reconhecer o sofrimento presente e o conhecimento tradicional não como oportunidades de mercado, e sim como imperativos de solidariedade.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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