Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente saúde mental

Ano começa movimentado para a medicina psicodélica

Novos sucessos clínicos são ofuscados por lances empresariais milionários

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Praia iluminada por céu com figuras psicodélicas coloridas
Ilstração de Raphael Egel - @liveenlightenment

Bastou uma semana pós-Réveillon para a pesquisa com psicodélicos e o mercado que ela abre serem atingidos por uma saraivada de notícias. As mais importantes, no prisma deste blog, vêm da área clínica, mas as que envolvem empresas e centenas de milhões de dólares estão fadadas a causar mais barulho.

Começando pelo que mais importa, cabe destacar um novo tento do grupo de Dráulio de Araújo no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN).

Dez dias atrás noticiou-se aqui o primeiro artigo publicado do Projeto Dunas, que investiga efeito antidepressivo da dimetiltriptamina (DMT) extraída de jurema-preta e aplicada por inalação. O trabalho saiu no periódico European Neuropsychopharmacology e tratava só do experimento inicial com voluntários saudáveis, que comprovou eficácia e segurança dessa via de administração.

Agora o time do ICe lançou a versão preliminar ("preprint", não auditada por outros pesquisadores) da avaliação de seis pacientes com depressão resistente submetidos ao tratamento experimental com DMT inalada, depositada no repositório aberto MedRxiv. Boas novas: o efeito antidepressivo foi imediato e, após uma semana, 4 dos 6 voluntários estavam em remissão.

Os autores compararam esses resultados com dois outros estudos semelhantes. Um deles testou a DMT para depressão em sete participantes, mas administrada por via intravenosa, com efeito psicodélico durando até 30 minutos (inalada, o efeito passa em 10-15 minutos).

Outra diferença: a pesquisa não envolveu acompanhamento psicoterápico, como se fez no grupo da UFRN. O benefício antidepressivo da injeção, verificado por meio de escalas padronizadas, foi bem menor que o da inalação no ICe.

A segunda comparação se deu com ensaio no qual se usou inalação com o mesmo aparelho vaporizador, Volcano, envolvendo 16 pacientes deprimidos, mas com uma substância aparentada, 5-MeO-DMT, originalmente extraído do veneno do sapo-do-rio-colorado (Bufo alvarius). Neste caso o benefício obtido foi similar ao do estudo brasileiro.

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Sala onde se realiza a inalação da DMT, em teste clínico do psicodélico como antidepressivo, no Hospital Universitário Onofre Lopes UFRN - Marcelo Leite / Folhapress

A 5-MeO-DMT por via nasal, por falar nisso, é o carro-chefe da empresa britânica Beckley PsyTech, nascida da Fundação Beckley, da ativista pela descriminalização de drogas Amanda Feilding. A firma presidida por seu filho Cosmo, que desenvolve a formulação BPL-003 da droga para tratar depressão e abuso de álcool, recebeu US$ 50 milhões de aporte da holding Atai Life Sciences, do controverso empresário Christian Angermayer, um defensor de patentes para psicodélicos.

Não há como tirar grandes conclusões dos três testes, com tão poucos participantes. Mas os experimentos sugerem que a DMT por via parenteral é segura e tem potencial para tratar depressão de maneira menos custosa do que sessões de várias horas com outros psicodélicos, como ayahuasca, MDMA (ecstasy) ou psilocibina, por via oral.

Acompanhar o tratamento com psicoterapia também parece ser mais eficaz. Aliás, no mesmo dia 4 de janeiro em que o artigo brasileiro foi depositado no MedRxiv, outro estudo mediu e confirmou a importância de uma boa relação colaborativa entre psicoterapeuta e paciente em tratamento com MDMA para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Marcelo Falchi, psiquiatra e primeiro autor do texto no MedRxiv, tem em vista a possível aplicação de psicoterapia apoiada por DMT em grande escala, como no SUS: "Optamos por uma abordagem menos invasiva e mais acessível, abrindo novos caminhos para o uso terapêutico de psicodélicos".

Outra notícia importante da primeira semana do ano apareceu no dia seguinte, 5 de janeiro, pelas mãos da Departamentos de Assuntos Veteranos dos EUA. Mais conhecida pela sigla VA, a agência atende ex-combatentes das muitas guerras em que os americanos se metem.

Agora, diante da epidemia de doença mental que resulta em mais de 17 suicídios por dia entre militares, lançou chamada pública para propostas de estudos com MDMA e psilocibina para tratar transtorno de estresse pós-traumático. Envolver-se em menos conflitos daria resultado melhor, decerto, mas os EUA não serão os EUA sem patrocinar algum combate em curso noutro país.

A notícia mais polêmica da semana, aliás, diz respeito à dupla MDMA-TEPT, terapia psicodélica mais próxima de ser aprovada pela agência americana de fármacos FDA após 37 anos de ativismo pela ONG Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos.

A Maps, na sigla em inglês, rebatizou sua divisão empresarial como Lykos Therapeutics ao anunciar ter levantado US$ 100 milhões de investidores privados, que se tornaram coproprietários da antiga Maps PBC. "PBC" significa corporação de benefício público, ou seja, uma empresa que tem por objetivo maximizar seu impacto social, não só o lucro.

A entrada de capitalistas na companhia repaginada tem motivado críticas de engajados na resistência psicodélica contra o proibicionismo. Muitos temem uma deturpação do movimento pela lógica empresarial.

Além disso, em paralelo com tal operação financeira, a ONG Maps continuou fazendo levantamento de fundos na área de filantropia, única financiadora, em tempos de bloqueio oficial, dos estudos que atraíram a atenção de investidores. Há quem veja aí um conflito de interesses, ou desvio de função dos recursos angariados.

Uma montanha de capital será necessária para lançar a psicoterapia baseada em MDMA quando for aprovada pela FDA, o que deve ocorrer neste ano ou em 2025. Sem a mobilização de recursos empresariais, a missão parecia impossível.

Logotipo em preto e azul da palavra Lykos
Logotipo da empresa Lykos Therapeutics - Reprodução

Não demorou para aparecerem nas redes sociais memes ridicularizando o nome da empresa, Lykos, que em grego quer dizer "lobo". A Maps, nesse caso, entraria como o cordeiro que fornece a pele para disfarçar o apetite voraz do canídeo.

Como que prevendo a má repercussão, Maps e Lykos se justificaram em comunicados. A Maps anunciou que manterá "supervisão seletiva de governança" sobre a Lykos, terá controle de votos na proporção 10:1 e indicará 6 dos 8 diretores da nova empresa, 4 deles "independentes".

A empresa justificou a escolha da marca lupina como indicação das qualidades –valentia, coragem, lealdade e inteligência– que ecoariam os valores da empresa. "Embora nosso nome esteja mudando, nosso compromisso com o benefício público não está", afirmou a Lykos em carta da CEO Amy Emerson.

"Como Lykos nos comprometemos a seguir construindo o legado da Maps e a fazer diferença real nas vidas de pacientes ao transformar o cuidado em saúde mental."

É no mínimo controversa, entre psiconautas, a noção de que o chamado renascimento psicodélico deva parir um mercado para extrair lucros do sofrimento alheio, mesmo que seja para mitigá-lo. Há quem diga não haver outra saída para dar acesso rápido e amplo, por exemplo para 800 mil veteranos de guerra traumatizados só nos EUA, a essas novas terapias.

Coincidência ou não, no mesmo 5 de janeiro em que VA lançou seu edital psicodélico, o periódico Nature Medicine publicou artigo sobre o tratamento com ibogaína para transtornos mentais de ex-combatentes com danos cerebrais. Esse outro psicodélico, originário de uma planta do Gabão (Tabernanthe iboga), tem oferecido bons resultados contra dependência química –mais uma condição comum entre veteranos.

Até o preconceito contra o LSD, fomentado na propaganda de outra guerra muito norte-americana, a declarada em 1971 por Ricchard Nixon contra as drogas, parece estar arrefecendo. O periódico JAMA Psychiatry, da Associação Médica Americana, publicou na edição impressa levantamento com 478.492 adultos, de 2008 a 2019, mostrando que o crescimento mais pronunciado do uso de ácido lisérgico se deu entre pessoas deprimidas com menos de 34 anos.

A sociedade norte-americana está doente, mental e moralmente. Mas quase todas as outras também estão, como o Brasil, e de uma maneira ou outra poderão beneficiar-se da liderança dos EUA na ciência psicodélica –se a invasão do capital nessa área não puser tudo a perder.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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