Voltaire de Souza

Crônicas da vida louca

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Voltaire de Souza
Descrição de chapéu cracolândia

Que cada um cumpra o seu dever

No mundo da droga, valores do patriotismo e da disciplina lutam para sobreviver

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Praças. Ruas. Avenidas.

A vida urbana é feita de constante movimento.

Cido era habitante da cracolândia.

Veio a ordem superior.

–Todo mundo sai daqui.

Exército? Polícia? Igreja evangélica?

Não exatamente.

As notícias apontam que foi decisão do tráfico.

–Pelo menos não me mandaram para muito longe.

Alguns quarteirões, na verdade.

Na praça Princesa Isabel, dizem que há mais facilidade para fugir da polícia.

Cido olhava para o alto.

–Aqui o ambiente é mais aberto. Mais nobre e inspirador.

Ao rés do chão, o quadro era o mesmo.

Pedras de crack. Papelotes de cocaína.

–Bem mais organizado. Cada banquinha no lugar certo.

Ele dava seu primeiro tapinha.

–Pode não parecer… mas gosto de ordem e disciplina.

Barracas e cobertores se espalhavam pelas imediações.

–A minha você recohece na hora.

Duas bandeirinhas do Brasil. Cruzadas na entrada.

–Isso me ajuda quando a polícia chega.

Ele amarrou o barbante na cintura.

–Não sou viciado.

O cachimbo de crack desmentia suas declarações.

–Sou dependente químico e cidadão de bem.

Tinha sido rápido o declínio de Cido na escala social.

–Eu tinha uma lojinha de peças perto da estação.

As coisas pioraram com a pandemia.

–A maior mentira que já pregaram na humanidade.

Vieram as tentações. As dívidas. As más companhias.

–O pastor da minha igreja foi morar em Miami.

Ele acha que é tudo destino.

–Põem a culpa no Bolsonaro.

Mais uma tragada.

–Não me arrependo do meu voto.

A manhã avançava pela selva da cidade.

Os olhos de Cido começaram a piscar.

–Logo vão consertar esse país.

Trovões. Nuvens carregadas. Relâmpagos.

Cido olhou para o céu.

–Aquela estátua ali… você não acha que se moveu?

Na mente alucinada de Cido, o herói movia sua espada de prata.

–O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever.

Tratava-se, evidentemente, de um erro.

O Duque de Caxias nunca pronunciou tal sentença.

Cido se perfilou.

–Seu desejo é uma ordem, Majestade.

Com vigor surpreendente, Cido empunhou uma estaca que estava disponível no local.

–É porrada em todo mundo.

Entre mortos e feridos, salvaram-se trinta pedras de crack e cem gramas de maconha.

–Agora eu mando aqui. Tá OK?

A polícia teve de intervir.

–Calma, Cido. Você está sendo violento demais.

–Só estou cumprindo o meu dever, caraca.

–Mas, Cido…

–Fazer esse pessoal entrar na linha.

O dever de um brasileiro deve ser sempre levado em conta.

Mas a frase inspiradora era de outro militar.

O Almirante Barroso.

No Ministério da Educação, todos apontam uma só raiz para o problema.

É preciso estudar melhor os símbolos e valores da pátria.

Só que, por vezes, a cabeça de cada um interpreta as coisas do seu próprio jeito.

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