Descrição de chapéu Leonardo da Vinci, 500

Dos fósseis às aves, Da Vinci investigava minuciosamente a natureza

Italiano tinha prodigiosa capacidade de observação e sede de entender o Cosmos, o corpo humano e os bichos

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"A Virgem dos Rochedos", de Leonardo da Vinci Wikimedia Commons

São Carlos

“Il sole non si muove” ou, em português, “O Sol não se move”, escreveu Leonardo da Vinci (1452-1519), empregando letras garrafais, no canto superior esquerdo de um de seus muitos cadernos que chegaram até nós.

A frase isolada parece profetizar aquilo que, reza a lenda, o astrônomo Galileu Galilei (1564-1642)  teria sussurrado mais de um século mais tarde ao ser condenado à prisão domiciliar pela Inquisição: “Eppur si muove” (“E no entanto ela se move”) —dessa vez, uma referência à Terra, que giraria em torno do Sol citado por Leonardo.

De fato, outros textos avulsos escritos por Da Vinci indicam que o polímata italiano estava à frente de seu tempo nesse quesito, como em tantos outros. “A Terra não está no centro da órbita do Sol, nem no centro do Universo, mas no centro de seus elementos companheiros, e unida a eles”, asseverava o artista.

Antecipar o que diria Galileu (e, antes dele, o polonês Nicolau Copérnico) é só um dos exemplos do que a prodigiosa capacidade de observação de Leonardo foi capaz de realizar. Nenhum aspecto do mundo natural escapava ao seu interesse, como revelam tanto os esboços em seus cadernos quanto alguns de seus quadros mais famosos.

Segundo o historiador da arte britânico Kenneth Clark, Da Vinci tinha “uma visão tão aguçada que chegava a ser inumana”. Não era, porém, um dom de nascença, mas o resultado de métodos que ele mesmo desenvolveu, no dia a dia, para captar detalhes de objetos, argumenta um de seus biógrafos, o escritor americano Walter Isaacson.

Leonardo chegou a descrever um desses truques para melhorar a capacidade de observação, que funciona como uma brincadeira entre amigos. Uma pessoa traça uma linha na parede, enquanto os demais participantes do jogo precisam cortar um pedaço de palha do tamanho exato dessa linha —quem se aproximar mais da medida, é claro, ganha, relata Isaacson em seu livro “Leonardo da Vinci”.

Graças a macetes como esse, Da Vinci conseguia enxergar detalhes insuspeitos de camadas de rochas, o formato de flores, os diferentes estágios do voo das aves e os movimentos caprichosos e turbulentos da água em redemoinhos, fontes e rios (uma de suas principais obsessões ao longo da vida).

É natural imaginar que tanta atenção aos detalhes da natureza fosse um meio para intensificar o realismo de sua arte. Basta observar, por exemplo, a versão mais antiga do quadro “A Virgem dos Rochedos” (pintado entre 1483 e 1486), uma delicada cena em que aparecem Jesus e João Batista ainda bebês, ao lado da Virgem Maria e de um anjo.

Na gruta onde estão os personagens, Leonardo pintou uma mistura de arenito (uma rocha sedimentar) e diabásio, rocha vulcânica intrusiva formada pela solidificação da lava após uma erupção. As plantas que aparecem na cena brotam apenas nos trechos de arenito que já parecem ter passado por um processo de erosão, permitindo que elas criassem raízes. São, além disso, vegetais que realmente poderiam brotar em áreas úmidas de uma gruta em certas épocas do ano.

O interesse de Leonardo, entretanto, ia muito além do que lhe podia ser útil em cenas artísticas. Quase sempre acaba se transformando em curiosidade em estado puro: o desejo de compreender e retratar todos os aspectos do Cosmos —e do microcosmo formado pelo corpo humano.

É isso o que se depreende do seu trabalho incansável com a anatomia humana, que ele costumava comparar a outros aspectos do mundo natural —artérias, veias e sangue com o leito dos rios e suas águas, por exemplo. Assim como outros pensadores do Renascimento, ele parecia enxergar uma conexão profunda, quase mística, entre as estruturas do corpo humano e as que podiam ser vistas nas estruturas geológicas e hidrológicas

Além disso, Leonardo também estava atento às similaridades anatômicas que uniam seres humanos e animais. Pode-se perceber isso em seus desenhos pioneiros de um feto no útero: como não dispunha de cadáveres do sexo feminino para dissecar, ele se valeu dos órgãos sexuais de uma vaca.

O resultado, ainda que não seja tão preciso quanto poderia, é um grande avanço em relação ao conhecimento da época, ao mesmo tempo em que retrata o bebê em gestação como um ser “inocente, miraculoso, misterioso”, diz Isaacson.   

O lado místico do fascínio de Leonardo pela natureza, no entanto, não o impedia de questionar as contradições que enxergava entre suas observações e as crenças religiosas de seu tempo. Ao observar fósseis de animais marinhos, como conchas de mariscos, que ficaram preservados em regiões montanhosas da Itália, ele percebeu que não seria possível explicar essas ocorrências com base na narrativa bíblica do Dilúvio, como faziam muitos de seus contemporâneos.

“Se o Dilúvio tivesse carregado as conchas a uma distância de trezentas ou quatrocentas milhas do mar, elas apareceriam em misturas de diferentes espécies, e não teriam se congregado juntas”, escreveu. Na verdade, concluiu ele, “de tempos em tempos o fundo do mar foi elevado, depositando essas conchas em camadas”, o que, do ponto de vista moderno, está essencialmente correto.

Num ponto, porém, Leonardo tinha pouco em comum com os cientistas modernos: a infinita paciência e/ou procrastinação. Sempre desejoso de ampliar um pouco mais suas observações e refazer seus desenhos, ele não publicou nada em vida, embora tivesse projetado diversos tratados científicos. Jamais teria conseguido emprego numa universidade do século 21.

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