Descrição de chapéu Coronavírus

Prevenção de pandemia é 20 vezes mais barata do que custo para enfrentamento

Mundo não está se preparando para frear futuras emergências de novas zoonoses

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São Carlos (SP)

O mundo não está se preparando para barrar futuras pandemias em sua origem, um erro que não faz sentido nem do ponto de vista econômico: sairia 20 vezes mais barato optar pela prevenção do que arcar com os custos, em vidas e dinheiro, trazidos por doenças emergentes.

O cálculo, feito por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, leva em conta o que é preciso investir para que as doenças infecciosas do futuro sejam identificadas e combatidas antes de deixarem sua principal fonte: os animais silvestres e, em medida bem menor, os domésticos.

De fato, como mostram os responsáveis por um novo estudo sobre o tema, que acaba de sair na revista especializada Science Advances, praticamente todas as pandemias desde o começo do século 20 surgiram como zoonoses.

Luz forte jogada em asa de morcego que, sobre uma mesa, é examinado por pesquisadores com instrumentos de proteção
Pesquisadores estudam morcego, na Tailândia - 11.dec.2020 - Adam Dean/The New York Times

Ou seja, doenças que saltaram de hospedeiros animais —principalmente os selvagens— para o organismo humano. É o caso da gripe espanhola de 1918-1919, da Aids e, muito provavelmente, da Covid-19 (embora ainda não tenha sido descartada de todo a hipótese de que o vírus, originalmente vindo de um animal, possa ter "escapado" de um laboratório).

Isso significa que a chamada prevenção primária de pandemias precisa ser feita mapeando a diversidade de patógenos (causadores de doenças), em especial vírus, que afetam animais silvestres.

Além disso, é preciso que esse mapeamento seja acompanhado de medidas capazes de mitigar os principais fatores que têm colocado a população humana em contato cada vez mais intenso com os hospedeiros de futuras doenças pandêmicas.

Entre esses fatores se destacam o desmatamento, o avanço das fronteiras agrícolas e o tráfico de animais silvestres (nesse último caso, a criação comercial dessas espécies em cativeiro também contribui para o problema).

A questão é que, mesmo depois do advento da Covid-19, alguns dos principais organismos internacionais, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o Banco Mundial, falam apenas do investimento em vacinas, medicamentos e testes diagnósticos para enfrentar ameaças pandêmicas do futuro. Esses investimentos são fundamentais, mas podem acabar sendo o equivalente a chorar pelo leite derramado se não houver um foco maior nos processos que levam um patógeno a emergir como ameaça.

"A resposta a pandemias está, em grande parte, nas mãos de cientistas, biomédicos e médicos extremamente capazes, mas que podem não estar familiarizados com os meios de prevenção primária", diz a demógrafa brasileira Marcia Castro, pesquisadora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard (EUA), coautora do estudo e colunista da Folha.

"A prevenção sempre é melhor e mais barata do que a cura. E o retorno do investimento em prevenção vai além dos benefícios para a saúde da população, já que também beneficia o meio ambiente e o crescimento econômico. O que fizemos é quantificar esse argumento", explica ela.

Usando dados sobre surtos de zoonoses (e as pandemias que podem ser derivadas delas) ao longo do último século, Castro e seus colegas estimaram o custo anual de vidas perdidas e danos à economia causados por essas doenças. (Embora possa parecer estranho estimar quanto "custa" a morte de uma pessoa, trata-se de algo quantificado rotineiramente por agências econômicas e governos.)

Na conta mais conservadora (ou seja, menos "gastadeira"), o custo dessas mortes seria de US$ 350 bilhões anuais. Já a perda média do PIB (Produto Interno Bruno, equivalente, grosso modo, à soma da riqueza produzida por uma sociedade) ligada a essas moléstias por ano seria de US$ 212 bilhões.

E quanto custaria para enfrentar o problema na origem, antes da chegada de novos vírus ao organismo humano?

Nessa conta, os pesquisadores incluíram investimentos no acompanhamento de animais silvestres em busca de patógenos potencialmente perigosos, o controle e monitoramento estritos do tráfico desses animais (hoje uma das principais fontes de renda do crime organizado) e programas para reduzir o desmatamento, principalmente em países tropicais como o Brasil.

Somadas, essas ações custariam US$ 20 bilhões por ano —menos de um vigésimo dos custos totais das doenças zoonóticas, ou um décimo do impacto que elas têm sobre o PIB global.

O mais importante, diz a equipe, é a observação e o controle muito mais cuidadosos das interações entre seres humanos e animais silvestres, e das forças econômicas e sociais que estão levando ao aumento desses contatos. É por isso que não faz muito sentido achar que a Covid-19 teria sido "criada em laboratório".

"Os dados mostram claramente que a grande maioria das doenças virais emergentes não surgiram em laboratórios de pesquisa, mas da transmissão acidental de animais para o homem", diz Mariana Vale, pesquisadora do Departamento de Ecologia da UFRJ e também coautora do estudo.

"Acidentes de laboratório podem acontecer, claro, mas a probabilidade é muito pequena se comparada à associada aos milhares de pessoas que entram em contato diariamente com animais silvestres nas florestas tropicais por causa da comercialização para os mercados de pets, carne de caça e medicina tradicional. Só no estado do Amazonas são 10,7 mil toneladas de carne de caça comercializada por ano, segundo um estudo de 2020", exemplifica ela.

Aliás, a dimensão desse mercado e a magnitude do desmatamento no Brasil deixa no ar uma dúvida assustadora: por que uma pandemia ainda não começou aqui? "Matéria-prima", a rigor, não falta.

Macacos, roedores e morcegos são os principais reservatórios de vírus zoonóticos. No caso desses três grupos de animais, a biodiversidade brasileira está entre as maiores do mundo. E a diversidade de vírus costuma acompanhar a de animais.

"Acho que [não aconteceu ainda] porque Deus é brasileiro", brinca a pesquisadora.

"Como a Amazônia ainda tem cerca de 80% de suas florestas, isso diminui a probabilidade de emergência e também de propagação de novas doenças. É bastante possível que vírus tenham passado de animais selvagens para o homem, causando mortes, mas que nunca chegaram a se espalhar porque as vítimas viviam em locais isolados. Mas, à medida que o desmatamento vai aumentando, claro, a probabilidade de emergência de uma nova doença aumenta também."

Outro possível elemento é o fato de que os vírus dos morcegos sul-americanos parecem ser transmitidos com menos facilidade para seres humanos do que os que existem em morcegos do Velho Mundo —e, como se sabe, os patógenos virais dos mamíferos voadores estão ligados a uma série de doenças emergentes, como o ebola e a própria Covid-19.

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