Polvos não têm coluna vertebral, tampouco direitos

Quando usados em laboratórios, esses animais não contam com proteção do governo, como ratos e macacos

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Elizabeth Preston
The New York Times

Ratos de laboratório têm direitos. Antes de poderem fazer experimentos com os animais, pesquisadores nos Estados Unidos precisam obter a aprovação de comitês que certificam o cumprimento das normas federais relativas ao abrigo e manuseio compassivo deles. A mesma coisa se aplica a cientistas que trabalham com camundongos, macacos, peixes ou tentilhões.

Esses animais protegidos possuem uma coisa em comum: uma coluna vertebral.

Mas os animais invertebrados usados em laboratórios de pesquisa, entre eles vermes, abelhas ou cefalópodes como lulas e polvos, não contam com a mesma proteção do governo federal. Diante da frequência crescente com que pesquisadores vêm trabalhando com cefalópodes para buscar respostas a perguntas de neurociência e outras áreas, a questão do tratamento compassivo dos animais vem ganhando urgência.

Governos da Europa e Austrália já incluíram esses animais invertebrados inteligentes em sua legislação. Mas nos Estados Unidos, disse a neurocientista Robyn Crook, da San Francisco State University, "se você trabalha com pesquisas e quiser comprar alguns polvos e fazer o que quiser com eles, não há nenhuma supervisão regulatória que o impeça".

Polvo nada em um aquário
Cientistas estão agindo para garantir que os polvos usados em pesquisas científicas tenham um tratamento melhor para não sofrerem - NOAA via NYT

Isso não significa que a área das pesquisas com cefalópodes seja um Velho Oeste. Cada vez mais, os institutos de pesquisas americanos vêm optando por submeter seus estudos com cefalópodes ao mesmo processo de aprovação usado em experimentos com camundongos ou outros vertebrados. Mas a falta de critérios de tratamento de cefalópodes para orientar suas decisões, somada à ausência de supervisão federal para apoiá-los, reflete o modo como as regras e leis estão atrasadas em relação ao entendimento científico da vida interior complexa desses animais.

Como um rato de laboratório, um polvo pode aprender a orientar-se num labirinto. Os polvos também conseguem realizar façanhas espertas das quais ratos não são capazes, como disfarçar-se de pedras ou serpentes, escapar de um tanque ou esconder-se dentro de cascas de coco.

Em 2021, a bióloga Alexandra Schnell, da Universidade de Cambridge, e outros descobriram que lulas conseguem passar em uma versão da prova do marshmallow, uma medida famosa de autocontrole em psicologia humana. Os cefalópodes resistem por até dois minutos à tentação de comer um pedaço de camarão, para ganharem um lanche ainda melhor (um camarão maior e vivo).

Diferentemente dos humanos —cuja inteligência está toda localizada na cabeça, por assim dizer—, os polvos levam a maior parte de seu sistema nervoso nos braços. Suas ventosas não apenas se agarram às coisas como as sentem e degustam. "É como se nossas mãos fossem forradas de línguas", explicou a bióloga Christine Huffard, do Instituto de Pesquisas do Aquário Monterey Bay.

Em artigo científico publicado em julho, Huffard e Peter Morse, da Universidade James Cook, na Austrália, demonstraram que polvos-de-anéis-azuis machos podem usar o toque para reconhecer fêmeas com quem já acasalaram. Depois de topar com uma ex-parceira, os machos fugiam, possivelmente para evitar ser devorados. Essa pesquisa sugere que polvos e outros cefalópodes são inteligentes e sensíveis.

Dois ratos de laboratório estão presos lado a lado em um aparelho semelhante a um carro
Os animais vertebrados, como os ratos, usados em laboratório possuem uma legislação de proteção no EUA, mas os invertebrados, não - Ryan M. Kelly/AFP

Mas será que sentem dor como nós sentimos? Não é uma preocupação puramente hipotética. Algumas pesquisas com cefalópodes envolvem cirurgias potencialmente perigosas, como a amputação de um braço de um polvo. No entanto, não podemos perguntar aos polvos se isso dói.

"A possibilidade de a experiência da dor existir em animais que não são vertebrados é uma ideia controversa", disse Crook. Num artigo científico de 2021, ela demonstrou que polvos que receberam uma injeção de ácido acético acariciaram a ferida com o bico e evitaram ficar numa câmara onde haviam ficado depois de receber a injeção. Mas os polvos tinham gostado de estar numa câmara onde receberam uma injeção anestesiante depois da primeira injeção.

Pesquisadores usaram um teste semelhante com roedores para avaliar se drogas podem lhes causar dor. "Sugerimos que os polvos sentem e são capazes de sentir a mesma coisa", disse Crook.

Em outro artigo científico de 2021, ela e seus coautores estudaram a atividade nervosa de polvos e lulas que haviam sido anestesiados —ou foi isso que os cientistas pensaram. Eles haviam mergulhado os animais em cloreto de magnésio para anestesiá-los, um procedimento comum em laboratórios. Quando um animal parou de se mexer e ficou branco, os cientistas presumiam que ele estava insensibilizado e não ficaria estressado ao ser manuseado. Mas leituras de eletrodos mostraram que por vários minutos depois de deixar de reagir, o cefalópode ainda podia sentir os cientistas tocando seu corpo.

Crook disse que a descoberta mudou imediatamente o modo como pesquisadores em seu laboratório anestesiavam os polvos. Hoje eles aguardam até 20 minutos a mais para ter a certeza de que os animais não sentirão nada. Ela espera que outros laboratórios também tenham mudado sua prática.

Quem é responsável pelo bem-estar de animais cativos? Nos Estados Unidos, a resposta é complicada.

A Lei do Bem-Estar Animal, aprovada em 1966, requer que animais como primatas e cães e gatos mantidos como pets recebam tratamento compassivo. A lei não se aplica a animais de criação, cavalos de corrida, invertebrados, peixes, ratos ou camundongos de laboratório. Outra lei, a Lei de Extensão de Pesquisas em Saúde de 1985, rege o tratamento de todos os animais vertebrados em pesquisas financiadas pelo governo americano.

Ambas as leis requerem que universidades e outras instituições de pesquisas contem com um Comitê Institucional de Cuidado e Uso de Animais, ou IACUC. Os comitês devem incluir pelo menos um médico veterinário e uma pessoa não filiada à instituição. Antes de iniciar um projeto de pesquisa, cientistas precisam submeter uma proposta ao comitê de sua instituição, que, por sua vez, precisa assegurar que o plano do cientista respeite as diretrizes federais.

"Acho que funciona bem", disse Steve Niemi, veterinário de animais de laboratório e diretor do Centro de Ciência Animal da Universidade de Boston. "Essa é uma área altamente contenciosa e que é acompanhada rigorosamente" no caso dos animais vertebrados, segundo ele.

Niemi disse que críticos já indicaram que os comitês de cuidado animal raramente deixam de aprovar pedidos de pesquisadores. Mas, em sua experiência, isso ocorre porque os comitês discutem os projetos exaustivamente com os cientistas, revendo o plano destes até que ele seja aceitável. "Para mim", ele disse, "nossa missão é possibilitar pesquisas com responsabilidade".

Na medida em que os cientistas descobrirem mais sobre a inteligência dos cefalópodes e sua percepção da dor, disse Niemi, "caberá a nós, eticamente falando, considerar se e como é o caso de incluí-los em nossa supervisão local".

Muitas universidades já estão pedindo voluntariamente a seus comitês para fazerem uma revisão das pesquisas sobre cefalópodes. De acordo com Crook, essa tendência vem ganhando força nos últimos dois anos.

Tampouco existe manual universal de tratamento de cefalópodes, isso porque os cientistas ainda estão apenas aprendendo sobre a biologia desses animais. Se um pesquisador violasse seu acordo com o comitê, por exemplo, não haveria maneira legal de impedir seu experimento de ser realizado.

"Sob certos aspectos, é regulamentação de faz de conta", disse Crook.

Homem observa lula gigante em um grande recipiente com água
O capitão John Bennett observa uma lula gigante que seu navio capturou na Antártida; ele doou o animal para ser analisado pelo laboratório Te Papa, na Nova Zelândia - Marty Melville - 16.set.14/AFP

Enquanto universidades e outras instituições de pesquisas tentam aplicar uma lei inexistente a seus cefalópodes, Katherine Meyer, diretora da Clínica de Leis e Política Animais na Escola Harvard de Direito, está tentando pressionar os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), a principal fonte financiadora federal de pesquisas biomédicas nos EUA, a mudar isso.

Em 2020 a clínica de Meyer solicitou ao Escritório de Bem-estar de Animais de Laboratório do NIH que regulamente as pesquisas com cefalópodes. "Simplesmente pensei que precisamos fazer alguma coisa para proteger os polvos", ela disse.

Meyer se deu conta de que, embora a Lei de Extensão de Pesquisas em Saúde de 1985 trate do cuidado a "animais usados em pesquisas", ela não define o que é um animal. A definição de animais como sendo criaturas "vertebradas vivas" está contida em outro documento do NIH.

"Foi então que enxerguei a abertura", disse Meyer. Ela disse que o escritório do NIH para animais de laboratório pode proteger os polvos e afins, simplesmente mudando a definição de "animais" para abranger os cefalópodes, em vez de emendar a lei subjacente.

Ela recebeu uma resposta em julho de 2020, dizendo que a agência "tem consciência dos padrões seguidos em outros países que incluem os cefalópodes na fiscalização e regulamentação do bem-estar animal" e está "considerando opções para fornecer diretrizes sobre o tratamento e uso compassivo de invertebrados em pesquisas financiadas pelo NIH".

Tirando isso, ela disse, "não recebemos nenhuma resposta concreta da agência".

Respondendo a um pedido de declarações, um porta-voz do NIH repetiu o texto da carta enviada a Meyer.

Huffard disse que, na ausência de novas diretrizes federais, muitos periódicos científicos internacionais pedem que pesquisadores americanos comprovem que submeteram uma pesquisa com cefalópodes à IACUC ou a outro processo de revisão institucional, antes que suas pesquisas possam ser publicadas.

Uma ONG de bem-estar animal chamada AAALAC International, que oferece credenciamento voluntário a instituições de pesquisas, também está recomendando que comitês institucionais tenham que aprovar pesquisas com cefalópodes.

Os polvos são animais muito complexos; ninguém tem dúvida disso. Mas será que são os invertebrados mais complexos? Depende de como você define isso. Se as pessoas estudassem as lacraias-do-mar do mesmo modo que estudam os polvos, ficariam espantadas ao perceber quão inteligentes são

Christine Huffard

Bióloga do Instituto de Pesquisas do Aquário Monterey Bay

"Não conheço nenhum pesquisador com cefalópodes que ignore essas regras", disse Huffard. Embora o governo americano não tenha determinado que os cefalópodes mereçam as mesmas proteções que outros animais, cientistas que estudam esses animais com muitos braços já fizeram essa determinação, eles próprios.

"Um polvo adoentado ou estressado não vai render dados úteis", disse Huffard. E, mesmo sem levar conta a questão os dados, acrescentou, "quero que os animais estejam felizes e saudáveis".

Contudo, disse Huffard, se estamos repensando o modo como nossas leis privilegiam os animais vertebrados, talvez não faça sentido valorizar os cefalópodes mais que outras espécies de invertebrados. "Os polvos são animais muito complexos; ninguém tem dúvida disso", ela falou. "Mas será que são os invertebrados mais complexos? Depende de como você define isso."

As abelhas, por exemplo, têm comportamentos e estruturas sociais muito complexos. O governo britânico recentemente declarou que caranguejos e lagostas são sencientes, e na Suíça é ilegal ferver uma lagosta viva. "Se as pessoas estudassem as lacraias-do-mar do mesmo modo que estudam os polvos, ficariam espantadas ao perceber quão inteligentes são", disse Huffard.

"Penso que deveríamos tratar todos os animais com esse nível de respeito."

Tradução de Clara Allain

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