Nasa precisa de laboratório especial para evitar praga marciana

Agência se prepara para lidar com amostras de rochas do planeta vermelho que podem chegar na próxima década

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Sarah Scoles
The New York Times

Quando Carl Sagan imaginou o envio de humanos a Marte em seu livro "A Civilização Cósmica" (The Cosmic Connection), publicado em 1973, ele mencionou um problema além do custo e da complexidade de tal missão: a possibilidade de que já existisse vida no planeta vermelho e que talvez a coisa não desse muito certo.

"É possível que em Marte existam patógenos", escreveu ele, "organismos que, se transportados para o ambiente terrestre, possam causar enormes danos biológicos —uma praga marciana".

Michael Crichton imaginou um cenário semelhante em seu romance "O Enigma de Andrômeda".

Aparentemente, massinhas de modelar mostrando bolinhas sobre pedras vermelhas; uma luva presa à parede manuseia as pedras
É baixa a chance de que rochas marcianas tragam doenças para a Terra, mas a Nasa está tomando cuidados - Julian Glander/The New York Times

Tais situações, em que amostras extraterrestres contêm organismos perigosos trazidos de carona, são exemplos de contaminação reversa, ou o risco de material de outros mundos prejudicar a biosfera da Terra.

"A probabilidade de que esses patógenos existam provavelmente é pequena", escreveu Sagan, "mas não podemos correr nem um pequeno risco com um bilhão de vidas".

Os cientistas há muito consideram os avisos de Sagan geralmente em termos hipotéticos. Mas ao longo da próxima década eles começarão a agir concretamente sobre os riscos de contaminação reversa. A Nasa e a Agência Espacial Europeia (ESA) estão se preparando para uma missão compartilhada chamada Mars Sample Return (Retorno de Amostras de Marte). Uma sonda no planeta vermelho está agora escavando material que será coletado por outras espaçonaves e, mais tarde, trazido à Terra.

Ninguém pode dizer com certeza que esse material não conterá pequenos marcianos. Nesse caso, ninguém pode dizer com certeza que eles não serão prejudiciais aos terráqueos.

Com essas preocupações em mente, a Nasa deve agir como se amostras de Marte pudessem gerar a próxima pandemia. "Como não é uma chance de zero por cento, estamos fazendo nossa devida diligência para garantir que não haja possibilidade de contaminação", disse Andrea Harrington, curadora de amostras de Marte na agência espacial americana. Assim, a Nasa planeja lidar com as amostras trazidas da mesma forma que os Centros de Controle e Prevenção de Doenças lidam com o ebola: cuidadosamente.

"Cuidadosamente", no caso, significa que, uma vez que as amostras de Marte cheguem à Terra, deverão ser inicialmente mantidas numa estrutura chamada Instalação de Recepção de Amostras. Os planejadores da missão dizem que a estrutura deve atender a um padrão conhecido como "Nível de Biossegurança 4", ou BSL-4, o que significa que é capaz de conter com segurança os patógenos mais perigosos conhecidos pela ciência. Mas também precisa ser imaculada: funcionalmente, uma sala limpa gigante que impede que substâncias da Terra contaminem as amostras de Marte.

A agência tem pouco tempo a perder: se a missão de retorno da amostra ocorrer a tempo —reconhecidamente um grande "se"—, as rochas de Marte poderão pousar na Terra em meados da década de 2030. Poderá levar o mesmo tempo para construir uma instalação que possa conter com segurança os materiais marcianos, e isso se for construída dentro do cronograma, sem interrupções de problemas políticos ou públicos.

Como nenhum laboratório existente era hermético e limpo o suficiente para a Nasa, quatro cientistas, incluindo a doutora Harrington, percorreram algumas das instalações mais perigosas do planeta. Ela foi acompanhada por três colegas, que se denominaram "Nasa Tiger Team RAMA". Embora esse apelido soe como o nome de um grupo de patrulha militar, é um acrônimo dos primeiros nomes dos membros da equipe –Richard Mattingly, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa; Andrea Harrington; Michael Calaway, empreiteiro do Centro Espacial Johnson; e Alvin Smith, também do Laboratório de Propulsão a Jato.

O grupo visitou pontos importantes como os Laboratórios Nacionais de Doenças Infecciosas Emergentes, em Boston, o Instituto de Pesquisa Médica de Doenças Infecciosas do Exército dos EUA, em Fort Detrick, em Maryland, e o ameaçador Edifício 18 dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, em Atlanta.

No total, a equipe visitou 18 instalações que lidam com horrores biológicos, mantêm salas ultralimpas ou fabricam equipamentos inovadores para qualquer finalidade. Os membros esperavam descobrir o que funcionou nos laboratórios existentes e o que uma instalação da Nasa poderia utilizar ou otimizar para manter a humanidade em segurança.

Para cientistas como Harrington, a pressa e os obstáculos valem a pena. "Esta será a primeira missão de retorno de amostras de outro planeta", disse ela. A primeira vez que outro mundo encontra humanos, em outras palavras, porque os humanos os introduziram.

Materiais de todo o sistema solar já chegaram antes à Terra para estudo: rochas e poeira lunares de missões americanas, soviéticas e chinesas; amostras de dois asteroides coletadas por sondas japonesas; e partículas do vento solar e um cometa recolhidos por naves espaciais. Mas Marte apresenta o que a Nasa considera um risco "significativo" de contaminação reversa, então as amostras do planeta vermelho se enquadram numa categoria legal chamada "Retorno à Terra Restrito".

"Temos que tratar essas amostras como se contivessem materiais biológicos perigosos", disse Nick Benardini, oficial de proteção planetária da Nasa. Benardini supervisiona políticas e programas que tentam impedir que os micróbios da Terra contaminem planetas ou luas em nosso sistema solar e que material extraterrestre prejudique a Terra.

John Rummel, que já trabalhou no escritório em duas etapas entre 1987 e 2008, acha certo que a agência espacial leve os riscos a sério, mesmo que sejam pequenos e pareçam ficção científica. "Há incógnitas significativas em relação ao potencial biológico", disse ele. "Um lugar como Marte é um planeta. Não sabemos como funciona."

Parte do objetivo do Mars Sample Return é descobrir como o planeta funciona, é claro —algo que não pode ser feito adequadamente no local porque os cientistas e seus inúmeros instrumentos ainda não podem viajar para lá. A missão já começou. A espaçonave Perseverance da Nasa, que chegou a Marte em 2021, está coletando e armazenando amostras para futuras coletas. As amostras serão então transportadas pelo mesmo rover ou por um helicóptero robótico para um módulo de pouso com um foguete. O foguete então os lançará na órbita de Marte, onde uma espaçonave construída na Europa pegará o material e o levará de volta à Terra.

Assim que a espaçonave se aproximar desse ponto azul-claro, com otimismo em 2033, as amostras cairão no deserto do extenso Campo de Teste e Treinamento de Utah, uma verdadeira paisagem marciana na Terra. Então, os cientistas poderão estudar as amostras com a instrumentação pesada que os laboratórios da Terra permitem.

O trabalho da Tiger Team RAMA era descobrir como tornar o risco de contaminação mais uma oportunidade do que um problema. Seu objetivo era pesquisar o que as instalações existentes de alta contenção (herméticas) e limpas ofereciam e o que a agência espacial poderia ter que inventar.

"Queríamos entender qual era o estado do estado", disse Harrington.

Para descobrir, a equipe visitou sete laboratórios de alta contenção nos Estados Unidos, um na Grã-Bretanha e um em Cingapura, bem como laboratórios espaciais superlimpos no Japão e na Europa. Também visitaram fábricas de equipamentos dessas instalações e de laboratórios modulares.

O maior desafio tecnológico é que a Unidade de Recebimento de Amostras deve atender a dois propósitos cruzados. "A Terra não toca na amostra", disse Meyer. Esse é o objetivo de uma instalação imaculada e limpa: evitar que substâncias da Terra contaminem materiais marcianos e deem falsos sinais a estudos científicos.

"E as amostras não tocam a Terra", continuou ele —a contaminação reversa. A função de um laboratório de alta contenção: manter isolado o que está lá dentro.

As salas limpas exigem pressão de ar positiva, o que significa que a pressão interna é maior do que a externa. O ar sempre flui, então, de dentro para fora —da pressão mais alta para a pressão mais baixa. É simplesmente o que o ar faz, por causa da física. As partículas são forçadas a sair, mas não forçam a entrada.

Os laboratórios de alta contenção, no entanto, funcionam de maneira oposta. Eles mantêm a pressão do ar negativa, com menor pressão dentro de suas paredes do que fora. As partículas podem entrar, mas não podem sair.

A Nasa precisa de espaço de pressão positiva para manter as amostras limpas e espaço de pressão negativa para manter as amostras contidas. É difícil integrar essas condições no mesmo espaço físico. Pode exigir estruturas criativas e concêntricas e sistemas de ventilação sofisticados. Nenhum laboratório na Terra fez isso na escala que o Mars Sample Return exige, porque nenhum laboratório jamais precisou. "Não estamos surpresos que isso não exista", disse Harrington.

O melhor que a Tiger Team RAMA podia fazer era ver como as instalações limpas e contidas se mantinham assim e esperar determinar a melhor forma de combiná-las.

Dentro dos laboratórios BSL-4 que a equipe visitou, os filtros de ar particulado de alta eficiência, ou HEPA, eram onipresentes. A equipe aprendeu sobre práticas de esterilização, como banho de instrumentos em vapores gasosos de peróxido de hidrogênio, que matam os contaminantes na superfície. Ainda devem ser feitos trabalhos para encontrar a maneira correta de esterilizar o material alienígena. "A pesquisa para entender a descontaminação, no contexto dessas amostras, está em andamento", disse Harrington.

No final, a equipe apresentou à Nasa algumas possibilidades da forma que poderia ter uma instalação de amostras marcianas: a agência poderia alterar um laboratório BSL-4 existente para ser mais puro. Ou, provavelmente exigindo mais dinheiro e tempo, a agência poderia construir uma nova instalação projetada exclusivamente para seus propósitos. A Nasa também está considerando opções intermediárias, como construir uma instalação modular de alta contenção mais barata e colocá-la dentro de um prédio de casca mais dura.

"Ainda há muita coisa sobre a mesa que estamos analisando", disse Harrington.

Seja qual for a decisão da Nasa, a investigação da equipe sugeriu que o processo de projetar e construir um local para estudo de amostras pode levar de 8 a 12 anos —contrariando o cronograma do retorno real da amostra. Diante disso, os membros da equipe recomendaram que a Nasa produza certos planos desde já.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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