As árvores conversam debaixo da terra? Cientistas divergem

De 'Avatar' a 'Ted Lasso', teoria da 'wood-wide web' está em toda parte, mas alguns pesquisadores afirmam que ela é exagerada

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Gabriel Popkin
The New York Times

Justine Karst, micologista da Universidade de Alberta (Canadá), temeu que as coisas tivessem ido longe demais quando seu filho, na oitava série, chegou em casa e lhe disse que tinha aprendido que as árvores podiam se comunicar por meio de redes subterrâneas.

Seu colega Jason Hoeksema, da Universidade do Mississippi (EUA), teve uma sensação semelhante ao assistir a um episódio de "Ted Lasso", em que um técnico de futebol diz a outro que as árvores de uma floresta cooperavam, em vez de competir, por recursos.

Poucas descobertas científicas recentes capturaram a imaginação do público como a rede de árvores —uma delicada teia de filamentos de fungos que, segundo a hipótese, transporta nutrientes e informações através do solo e ajuda as florestas a prosperar.

Jason Hoeksema, biólogo da Universidade do Mississippi; árvores de uma floresta cooperam em vez de competir por recursos - Wayne Lewis/The New York Times

A ideia surgiu no final da década de 1990 a partir de estudos que mostravam que açúcares e nutrientes podem fluir no subsolo entre as árvores.

Em algumas florestas, pesquisadores rastrearam fungos desde as raízes de uma árvore até as de outras, sugerindo que os fios de micélio podem estar fornecendo canais condutores entre as árvores.

Essas descobertas desafiaram a visão convencional das florestas como uma mera população de árvores: as árvores e os fungos são, de fato, atores equivalentes no cenário ecológico, dizem os cientistas. Sem ambos, as florestas como as conhecemos não existiriam.

Cientistas e não cientistas tiraram grandes e abrangentes conclusões dessa pesquisa. Eles postularam que as redes compartilhadas de fungos são onipresentes nas florestas ao redor do mundo, que ajudam as árvores a "conversar" entre si e, como o treinador Beard articulou em "Ted Lasso", tornam as florestas lugares fundamentalmente cooperativos, com árvores e fungos unidos em comum propósito —um distanciamento drástico da imagem darwiniana usual de competição entre espécies.

O conceito foi apresentado em inúmeras reportagens na mídia, programas de TV e livros best-seller, incluindo um vencedor do Prêmio Pulitzer. Até aparece em "Avatar", o filme de maior bilheteria de todos os tempos.

E a teoria pode estar começando a influenciar o que acontece nas florestas reais. Alguns cientistas, por exemplo, sugeriram o manejo de florestas explicitamente para proteger as redes de fungos.

Mas, à medida que a "grande rede de árvores" ganhou fama, também inspirou uma reação entre os cientistas.

Em uma revisão recente de pesquisas publicadas, Karst, Hoeksema e Melanie Jones, bióloga da Universidade da Colúmbia Britânica em Okanagan (Canadá), encontraram poucas evidências de que redes de fungos compartilhadas ajudem as árvores a se comunicar, trocar recursos ou prosperar.

Melanie Jones, bióloga da Universidade da Colúmbia Britânica em Okanagan (Canadá); cientistas ainda precisam mostrar se teias são generalizadas ou ecologicamente significativas nas florestas. - Jennilee Marigomen/NYT

De fato, disse o trio, os cientistas ainda precisam mostrar que essas teias são generalizadas ou ecologicamente significativas nas florestas.

Para alguns de seus pares, essa verificação da realidade está muito atrasada. "Acho que esta é uma conversa muito oportuna", disse Kabir Peay, micologista da Universidade Stanford, sobre uma apresentação que Karst fez recentemente. Ele esperava que pudesse "reorientar o campo".

Outros, no entanto, sustentam que a teia de árvores está em terreno firme e estão confiantes de que mais pesquisas confirmarão muitas das hipóteses apresentadas sobre fungos nas florestas. Colin Averill, micologista da ETH Zurich (Suíça), disse que as evidências que Karst reuniu são impressionantes. Mas, acrescentou, "a maneira como interpreto a totalidade dessa evidência é completamente diferente".

A maioria das raízes das plantas é colonizada por fungos micorrízicos, formando uma das simbioses mais difundidas na Terra. Os fungos coletam água e nutrientes do solo; eles então passam alguns desses tesouros para as plantas em troca de açúcares e outras moléculas contendo carbono.

David Read, botânico da Universidade de Sheffield (Reino Unido), mostrou em um artigo de 1984 que compostos marcados com uma forma radioativa de carbono poderiam fluir através de fungos entre plantas cultivadas em laboratório.

Anos depois, Suzanne Simard, então ecologista do Ministério de Florestas da Colúmbia Britânica, demonstrou a transferência de carbono bidirecional em uma floresta entre abetos-de-Douglas jovens e bétulas de papel.

Quando Simard e seus colegas sombrearam os abetos para reduzir sua capacidade de fotossíntese, a absorção de carbono radioativo pelas árvores aumentou, sugerindo que o fluxo subterrâneo de carbono poderia propiciar o crescimento de árvores jovens no sub-bosque sombrio.

Simard e seus colegas publicaram seus resultados em 1997 na revista Nature, que colocou o trabalho na capa e batizou a descoberta de "wood wide web". Logo depois, um grupo de pesquisadores seniores criticou o estudo, dizendo que havia falhas metodológicas que confundiam os resultados. Simard respondeu às críticas e ela e seus colegas projetaram estudos adicionais para abordá-las.

Com o tempo, as críticas se dissiparam e a rede de árvores ganhou adeptos. O artigo de 1997 de Simard recebeu quase 1.000 citações e sua Palestra TED de 2016, "Como as árvores conversam entre si", foi vista mais de 5 milhões de vezes.

Em seu livro "The Hidden Life of Trees" [A vida oculta das árvores], que já vendeu mais de 2 milhões de exemplares, Peter Wohlleben, um engenheiro florestal alemão, citou Simard ao descrever as florestas como redes sociais e fungos micorrízicos como "cabos de internet de fibra óptica" que ajudam as árvores a informar umas às outras sobre perigos como insetos e seca.

A pesquisa subterrânea em florestas também continuou crescendo. Em 2016, Tamir Klein, ecofisiologista de plantas na Universidade de Basel (Suíça) e agora no Instituto Weizmann de Ciência em Israel, estendeu a pesquisa de Simard para uma floresta suíça madura de abetos, pinheiros, larícios e faias. Sua equipe rastreou isótopos de carbono de uma árvore até as raízes de outras árvores próximas, incluindo espécies diferentes, em um terreno experimental na floresta. Os pesquisadores atribuíram a maior parte do movimento do carbono aos fungos micorrízicos, mas reconheceram que não o comprovaram.

Simard, que está na Universidade da Colúmbia Britânica desde 2002, liderou outros estudos mostrando que grandes e antigas árvores "mães" são centros de redes florestais e podem enviar carbono pelo subsolo para plantas mais jovens. Ela defendeu a ideia de que as árvores se comunicam por meio de redes micorrízicas e foi contra uma antiga ideia de que a competição entre as árvores é a força dominante que molda as florestas. Em sua palestra TED, ela chamou as árvores de "supercooperadoras".

Mas à medida que a popularidade da Wood Wide Web aumentou, dentro e fora dos círculos científicos, uma reação cética evoluiu. No ano passado, Kathryn Flinn, ecologista da Universidade Baldwin Wallace, em Ohio (EUA), argumentou na revista Scientific American que Simard e outros exageraram o grau de cooperação entre as árvores nas florestas. A maioria dos especialistas, escreveu Flinn, acredita que grupos de organismos cujos membros sacrificam seus próprios interesses em nome da comunidade raramente evoluem, como resultado da poderosa força da seleção natural entre indivíduos concorrentes.

Em vez disso, ela suspeita que os fungos provavelmente distribuem carbono de acordo com seus próprios interesses, não os das árvores. "Essa me parece a explicação mais simples", disse ela em entrevista.

Mesmo alguns que já promoveram a ideia de redes compartilhadas de fungos estão repensando a hipótese. Jones, uma das coautoras de Simard em 1997, diz que lamenta que ela e seus colegas tenham escrito no artigo que tinham evidências de conexões fúngicas entre as árvores. Na verdade, diz Jones, eles não examinaram se os fungos mediaram os fluxos de carbono.

Para sua recente revisão da literatura, Karst, Hoeksema e Jones reuniram todos os estudos que encontraram com afirmações sobre a estrutura ou a função de tais redes subterrâneas de fungos. Os pesquisadores se concentraram em estudos de campo em florestas, não em experimentos de laboratório ou estufa.

Em uma apresentação em agosto baseada na revisão, na conferência da International Mycorrhiza Society em Pequim, Karst argumentou que muitas das evidências usadas para apoiar a hipótese da Wood Wide Web poderiam ter outras explicações.

Por exemplo, em muitos artigos, os cientistas acreditaram que, se encontrassem um fungo específico em várias raízes de árvores ou que os recursos se movessem entre as árvores, elas deveriam estar diretamente ligadas. Mas poucos estudos descartaram possibilidades alternativas —por exemplo, de que os recursos pudessem percorrer parte do caminho através do solo.

Os pesquisadores também encontraram um número crescente de declarações não sustentadas pela literatura científica sobre redes de fungos conectando e ajudando árvores.

Frequentemente, artigos como o de Klein são citados por outros como prova de redes nas florestas, como Karst e colegas descobriram, com ressalvas que constavam do trabalho original deixadas de fora dos estudos mais recentes.

"Os cientistas", concluiu Karst em sua apresentação, "tornaram-se vetores de alegações infundadas." Vários artigos recentes, ela observa, pediram mudanças na forma como as florestas são manejadas, com base no conceito da "wood wide web".

Floresta na região de Starkville, no Mississippi; hipótese de que filamentos de fungos transportam nutrientes e informações pelo solo - Robert Wayne Lewis/NYT

Karst disse que "é altamente provável" que existam redes de fungos compartilhadas nas florestas. Em um estudo de 2012, a equipe de Simard encontrou DNA fúngico idêntico nas raízes de pinheiros-de-Douglas próximos. Os pesquisadores então amostraram o solo entre as árvores em fatias finas e encontraram os mesmos segmentos repetidos de DNA conhecidos como "microssatélites" em cada fatia, confirmando que o fungo preencheu a lacuna entre as raízes. Mas esse estudo não examinou quais recursos, se havia, estavam fluindo pela rede, e poucos outros cientistas mapearam redes de fungos com tal rigor.

Mesmo que existam redes de fungos entre árvores, Karst e seus colegas dizem que as afirmações comuns sobre essas redes não se sustentam. Por exemplo, em muitos estudos, as redes putativas pareciam ou atrapalhar o crescimento das árvores ou não ter nenhum efeito.

Ninguém demonstrou que os fungos distribuem quantidades significativas de recursos entre as árvores de forma a aumentar a aptidão das árvores receptoras, disse Hoeksema. No entanto, quase todas as discussões sobre a "Wood Wide Web", científicas ou populares, a descrevem como benéfica para as árvores.

Outros, no entanto, continuam convencidos de que o tempo provará a rede de árvores.

Embora a onipresença das redes de fungos compartilhadas e a importância delas para o crescimento das árvores permaneçam questões em aberto, Averill, da ETH Zurich, disse que o título da apresentação de Karst —"A decadência da rede de árvores?"— sugere incorretamente que o próprio conceito é falho. Em vez disso, ele espera que os cientistas aproveitem as pistas tentadoras coletadas até agora, procurando redes em mais florestas. De fato, membros da equipe de Karst geraram o que Averill considera algumas das evidências mais convincentes da rede de árvores.

"Está muito claro que em algumas florestas em alguns lugares diferentes árvores estão absolutamente conectadas por fungos", disse ele.

Simard concordou que poucas redes de fungos do mundo real foram mapeadas usando microssatélites de DNA devido à dificuldade de se fazer tais estudos. Kevin Beiler, estudante de pós-graduação que liderou o trabalho de campo para o estudo de 2012 com Simard, "passou cinco anos de sua vida mapeando essas redes", disse Simard. "É muito demorado."

Apesar desses desafios, disse ela, estudos publicados em outras florestas usando outros métodos a convenceram de que as redes compartilhadas de fungos são comuns.

"O campo das redes micorrízicas tem sido prejudicado por ter que continuar voltando e refazendo esses experimentos", disse Simard. "Em algum momento você tem que passar para o próximo passo."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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