Cães em área de desastre de Tchernóbil se tornaram geneticamente distintos

Grupo provavelmente surgiu a partir de animais abandonados após evacuação causada pelo acidente nuclear

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Um estudo encontrou que os cães vivendo próximos à área do desastre de Tchernóbil, na Ucrânia, são geneticamente distintos daquelas que estão mais afastadas da área de alta radioatividade, indicando possíveis efeitos da exposição radioativa ao longo dos anos.

A análise conseguiu identificar pelo menos 15 famílias (grupos) de cães que vivem na zona de exclusão de Tchernóbil, uma área hoje fechada após a evacuação das populações que viviam ali após o desastre nuclear que ocorreu na usina número quatro, em abril de 1986.

Comparadas com cães de raças puras e outras populações que vivem distantes da área do acidente, as populações de cachorros que vivem ali compartilham diversidade genética entre si.

Os cães costumam se abrigar em locais que foram abandonados após o desastre nuclear, próximos à cidade de Pripyat, na Ucrânia
Os cães costumam se abrigar em locais que foram abandonados após o desastre nuclear, próximos à cidade de Pripyat, na Ucrânia - Jordan Lapier

As descobertas foram publicadas em um artigo na revista especializada Science Advances nesta sexta (3). Participam do estudo pesquisadores da Academia Polonesa de Ciências, da Universidade Nacional de Kiev e do instituto Ecocentro Estadual especializado em Tchernóbil (Ucrânia), da Universidade de Columbia, Universidade Estadual da Carolina do Norte e da Universidade da Carolina do Sul (EUA) e do Instituto Nacional de Pesquisa em Genoma Humano, ligado ao Instituto Nacional de Saúde (NIH) americano.

Para analisar as populações de cães, os pesquisadores coletaram amostras de sangue de 302 indivíduos entre 2017 e 2019 que faziam parte do programa de Iniciativa de Pesquisa de Cães de Tchernóbil. Essa iniciativa tinha como objetivo acolher e dar atendimento médico-veterinário aos cães que vivem soltos na área isolada de exclusão de Tchernóbil e que, em um dado momento, chegou a 800 indivíduos.

As amostras foram coletadas na região da usina (132 indivíduos), sendo 28 próximo a um depósito de combustível nuclear, nove na cidade-fantasma de Pripyat, que foi evacuada em 1986 após o desastre nuclear, 14 na estação de trem abandonada de Semikhody e outros 81 circulando na área. Além desses, 154 cães da cidade de Tchernóbil, a cerca de 15 quilômetros do incidente, e outros 16 da cidade Slavutych, na fronteira com a Bielorrúsia, a 45 km, também foram estudados.

Com as amostras de sangue em mãos, os pesquisadores fizeram análises do material genético coletado. Não sendo possível saber quais os genes —e se houve, de fato, efeito— afetados pela exposição contínua à radioatividade, eles buscaram áreas chamadas de SNPs, que são nucleotídeos únicos (nucleotídeo é uma das bases do DNA, formado pelas letras A, T, C ou G, referentes aos aminoácidos que compõem cada "letra" do material genético). Foram avaliados mais de 129 mil pares de nucleotídeos.

A pesquisa mostrou que os cães da área próxima à usina formam um grupo totalmente distinto daquele dos indivíduos da cidade de Tchernóbil, provavelmente que se originou a partir dos pets deixados para trás após a evacuação da área. Quando comparados às raças de cães do Leste Europeu, era possível observar que os cães de Tchernóbil formavam um grupo à parte, embora dentro da própria análise houvesse variação quanto à região geográfica em que eles se encontravam.

"Esse é um exemplo ‘na natureza’ de como a seleção natural age por isolamento. As populações que permaneceram na zona de exclusão da usina são geneticamente distintas daquelas da cidade de Tchernóbil e do Leste Europeu", explica Timothy Mousseau, professor de biologia evolutiva na Universidade da Carolina do Sul e último autor do estudo.

De acordo com Gabriella Spatola, a identificação de que os cães ali são populações distintas é o primeiro passo para entender como esses animais estão interagindo e trocando diversidade genética entre si. "O que os dados nos mostram é que esses cães até se deslocam um pouco para outras áreas, pois vimos sobreposição genética, mas na realidade o isolamento daquela população se deu, em grande parte, porque ali eles encontram abrigo e comida e permaneceram isolados."

Esses cães, segundo os autores, viviam às custas de comida dada pelos trabalhadores que viviam na região ou na limpeza das usinas após o desastre e, mais recentemente, de turistas que visitam a área em uma espécie de "turismo radioativo". Muitos deles estão lá há pelo menos 15 gerações.

"Agora que conseguimos determinar geneticamente essas populações como distintas, e são grupos de famílias inteiros, vamos partir para a próxima etapa do experimento que é procurar por áreas ou sinais no DNA que indiquem modificação causada pela radiação", explica Spatola.

Algumas das modificações podem ser uma taxa elevada de mutações, deleções de partes completas do genoma e até mesmo novas adaptações.

De acordo com Elaine Ostrander, as pesquisas dos efeitos da radiação no genoma dos cães podem ajudar a elucidar questões como novas aplicações e drogas para câncer, modificações que aparecem no DNA em pessoas que trabalham próximas ou com exposição intensa à radiação e até mesmo os efeitos da exposição de longo prazo da radiação no nosso organismo.

"O próximo passo será fazer o sequenciamento completo do genoma e identificar esses sinais. As aplicações para a saúde humana e até mesmo para entender os efeitos da radiação são muito promissoras. E esse é o primeiro estudo feito com diversidade genética de animais mamíferos de grande porte que foram expostos à radiação", afirma ela.

Para Mousseau, o estudo irá permitir fazer inferências para outros animais selvagens que vivem ali e para os quais não é possível fazer uma análise tão ampla. "Sabemos que alces, cavalos e cervídeos que vivem ali podem também estar expostos a níveis variados de radioatividade. No caso dos cães, além das amostras em grande quantidade, pudemos comparar com milhares de indivíduos de raças de todo o mundo, e isso é fantástico."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.