Descrição de chapéu África

No antigo Egito, mãos decepadas eram despojos de guerra

Ao retornarem de combate, soldados apresentavam a seu faraó as mãos dos adversários derrotados, segundo cientistas

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Franz Lidz
The New York Times

Aristóteles descreveu a mão como "a ferramenta das ferramentas". Para Immanuel Kant, ela era "a parte visível do cérebro". As primeiras obras de arte foram impressões de mãos nas paredes de cavernas. Ao longo da história, gestos de mãos simbolizaram toda a gama da experiência humana: poder, ternura, criatividade, conflito, até mesmo o toque divino (bravo, Michelangelo!). Sem mãos, a civilização seria inconcebível.

Assim, a descoberta em 2011 dos ossos de uma dúzia de mãos direitas num sítio arqueológico hoje conhecido como Tell el-Dab’a, no passado a cidade do Egito antigo Avaris, foi especialmente perturbadora. Os restos mortais foram desenterrados, a maioria de palmas para baixo, de três covas rasas perto do salão do trono de um palácio real. As mãos, além de vários dedos desarticulados, provavelmente foram sepultadas durante a 15ª dinastia egípcia, entre 1640 a.C. e 1530 a.C. A parte oriental do delta do Nilo, no Egito, era controlada na época por uma dinastia conhecida como a dos Hicsos, ou "soberanos de terras estrangeiras".

Esqueletos de mãos direitas descobertos em 2011 num sítio arqueológico de 3.500 anos hoje conhecido como Tell el-Dab’a, no passado a cidade do Egito antigo Avaris
Esqueletos de mãos direitas descobertos em 2011 num sítio arqueológico de 3.500 anos hoje conhecido como Tell el-Dab’a, no passado a cidade do Egito antigo Avaris - Julia Gresky via The New York Times

Os hicsos foram descritos pelo historiador egípcio ptolemaico Manetho como "invasores de uma raça obscura" que conquistaram a região pela força, mas pesquisas recentes indicam que eles eram descendentes de migrantes que vieram pacificamente ao longo de séculos do sudoeste da Ásia —os atuais Israel e territórios palestinos. Com o tempo, alguns deles chegaram ao poder como os hicsos, centralizando seu poder em Avaris.

Acredita-se que os hicsos teriam introduzido ao Egito o cavalo e a biga, a fabricação de vidro e armas de vários tipos, incluindo machadinhas de guerra e arcos compostos (construídos de vários materiais). Um estudo recente publicado na revista Nature propõe que os hicsos tinham um costume conhecido como o Ouro da Bravura, que envolvia levar as mãos de combatentes inimigos como troféus de guerra.

O ritual parece ter se tornado uma prática comum no Egito. Ao retornarem de combate, soldados apresentavam a seu faraó ou comandante militar as mãos direitas decepadas dos adversários derrotados.

"As mãos amputadas eram uma maneira segura de contar os inimigos mortos", disse Manfred Bietak, arqueólogo da Academia Austríaca de Ciências que colaborou no artigo. "E deixavam o inimigo morto incapaz de combater novamente contra o Egito no submundo."

Inscrições em túmulos e baixos-relevos em templos descrevem a cerimônia pública sinistra, mas o novo estudo, feito por uma equipe de pesquisadores alemães e austríacos e baseado em uma análise de restos esqueletais, traz as primeiras provas físicas de sua ocorrência.

"As amputações eram realizadas cirurgicamente, com cuidados meticulosos", disse Kara Cooney, professora de arte e arquitetura egípcias na UCLA. "Ainda há carne e unhas nas mãos, proporcionando mais informações."

O local onde foram encontradas as 11 mãos direitas no sítio arqueológico de Tell el-Dab'a, no Egito
O local onde foram encontradas as 11 mãos direitas no sítio arqueológico de Tell el-Dab'a, no Egito - Julia Gresky via NYT

Em 2011 as mãos frágeis foram endurecidas com cola solúvel em acetona, para que pudessem ser retiradas do solo em um molde de gesso. Mal preservadas, elas não puderam ser geneticamente testadas. A paleopatologista Julia Gresky, do Instituto Arqueológico Alemão, em Berlim, determinou seu sexo biológico usando um método não invasivo: comparando o comprimento do dedo indicador com o comprimento do dedo anelar.

"Os dedos anelares de homens tendem a ser mais longos que seus dedos indicadores", disse Gresky. "No caso das mulheres, geralmente ocorre o contrário."

Alguns críticos consideram esse critério simplista e não confiável, mas Gresky tem confiança na ideia de que pelo menos 11 das 12 mãos eram de homens. "Essas 11 mãos eram grandes e robustas", ela disse. "A 12ª mão é muito menor e possivelmente feminina. Tenho boa dose de certeza de que era de uma mulher."

Cooney observa que não há registros indicando que mulheres tivessem sido combatentes no antigo Egito. "A guerra era uma esfera masculina", ela disse. Mas textos egípcios do reinado de Ramsés 3º, mais ou menos entre 1186 a.C. e 1155 a.C., indicam que havia mulheres no exército líbio.

Todos os ossos desenterrados em Avaris estavam plenamente formados, mas não mostram sinais de degeneração ligada à idade, sugerindo que teriam pertencido a pessoas mais ou menos na faixa dos 14 aos 30 anos de idade. Alguns egiptólogos haviam teorizado que o desmembramento teria sido um castigo bárbaro imposto a criminosos, mas Gresky considera que a localização, o grau de cuidado e possivelmente o posicionamento das mãos decepadas indica que teriam sido troféus de guerra.

Salima Ikram, egiptologista da Universidade Americana do Cairo que não participou do projeto, disse que a nova análise "levanta questões interessantes sobre as origens de tradições que mostram domínio sobre inimigos, não apenas no Egito, mas em todo o mundo antigo."

'Peixes em cestas'

Os antigos egípcios são venerados por suas realizações na arte, arquitetura e tecnologia. Mas sua tradição brutal de mutilar criminosos e adversários precede os hicsos em mais de um milênio. Os perjuros (pessoas que dão falso testemunho) às vezes tinham seus narizes e orelhas decepados como castigo. Insurgentes eram empalados entre as costelas, até morrer. A Paleta de Narmer, uma placa gravada cerimonial que data do tempo da unificação do Alto e Baixo Egito, cerca de 5.000 anos atrás, mostra a decapitação e mutilação de pessoas que parecem ter sido chefes de tribos rivais.

Em um lado da paleta, o rei Narmer ergue uma clava na mão direita, enquanto com a esquerda puxa pelos cabelos um prisioneiro ajoelhado. "A imagem do golpeamento teria sido uma demonstração pública do poder do rei Narmer sobre seu inimigo, esmagando seu crânio em pedaços", disse Cooney.

No verso da paleta o rei inspeciona fileiras de cadáveres amarrados e decapitados, com as cabeças colocadas entre suas pernas e seus pênis castrados sobre as cabeças. "O desmembramento era uma maldição para os antigos egípcios, que queriam seus corpos inteiros para uma vida materializada após a morte", disse Cooney.

Um baixo-relevo no templo mortuário de Ramsés 3º, em Medinet Habu, mostra o faraó de pé numa sacada após uma vitória, a pouca distância de pilhas de falos e mãos decepados de seus inimigos (12.312 falos e 24.625 mãos, segundo uma tradução do registro cuidadoso feito por escribas do exército).

No templo de Amon em Karnak, uma crônica de uma batalha do século 13 a.C. detalha prisioneiros sendo levados de volta ao faraó Merneptah com "jumentos à sua frente carregados de pênis não circuncidados da terra da Líbia e mãos de todas as terras estrangeiras que estavam com eles, como peixes em cestas".

Se pudermos acreditar na contagem de mortos, os egípcios colheram os pênis de 6.359 inimigos mortos não circuncidados e as mãos de 2.362 inimigos circuncidados. "O mau cheiro deveria ter sido medonho, e teria sido esse o motivo do comentário sobre ‘peixes em cestas’", disse Cooney.

A mão errada

Com a exceção de delitos especialmente hediondos, como roubar dos túmulos de faraós, a amputação de mãos era um castigo raro no antigo Egito, razão por que Bietak disse que é improvável que as mãos encontradas em Avaris fossem de criminosos. Mas essas decepações eram um tema relativamente comum em cenas militares do Império Novo, que começou no século 16 a.C. e durou quase 500 anos.

Bietak, que chefia escavações em Tell el-Dab’a desde 1966, disse que os egípcios parecem ter adotado esse costume entre 50 e 80 anos antes do que é indicado pelas evidências de inscrições e imagens. Um baixo-relevo no templo de Ahmose 1º em Abidos mostra uma pilha de mãos decepadas em um campo de batalha. Ahmose 1º foi o rei que conquistou Avaris e derrotou os hicsos.

As mãos encontradas em Avaris foram decepadas de vítimas ainda vivas ou de pessoas mortas havia pouco tempo? "Quando foram colocadas nas covas, as mãos deveriam estar suficientemente flexíveis e moles para poderem ser esticadas e postas numa posição apresentável", disse Gresky. "Isso indica que teriam sido colocadas ali antes do início do rigor mortis ou quando ele já tinha passado." Provavelmente depois, ela imagina; as mãos devem ter sido colhidas e guardadas por algum tempo antes de ser colocadas na cova. "Se foi antes", disse Gesky, "as amputações foram feitas logo antes ou mesmo durante a cerimônia de oferenda."

Para Gresky, o mais provável é que as mãos teriam sido decepadas sem grandes cuidados entre um e quatro dias após a morte. Ela observou que as covas teriam sido visíveis da sala do trono do palácio, o que aponta para uma cerimônia pública e reforça a hipótese de que as mãos tenham sido despojos de guerra.

Por que decepar a mão direita? "A mão direita geralmente é a dominante, usada para escrever, trabalhar e lutar", disse Cooney. "Decepá-la de uma pessoa viva é um meio de impor controle violento e possivelmente deixar a vítima dessa excisão viva para que todos vissem —um aviso ambulante a quem pensasse em desafiar os detentores do poder."

Tradução de Clara Allain

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