Morre o aclamado primatólogo Frans de Waal, aos 75 anos

Cientista foi ousado e criativo ao pesquisar empatia e senso de justiça entre primatas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Carlos (SP)

O primatólogo holandês Frans de Waal, um dos principais responsáveis por revolucionar a visão da ciência sobre a complexidade comportamental e cognitiva de chimpanzés e demais grandes símios, morreu na última quinta-feira (14), aos 75 anos de idade. Waal tinha câncer de estômago e vivia há décadas em Atlanta (sul dos EUA), onde era professor na Universidade Emory.

Batizado como Franciscus Bernardus Maria de Waal, ele nasceu numa família católica da província de Brabante e tinha cinco irmãos. Embora tenha se tornado ateu, mantinha certo carinho pelos padres tolerantes e de bem com a vida, apreciadores de cerveja e charutos, que conheceu na juventude, conforme conta em seu livro "The Bonobo and the Atheist" ("O Bonobo e o Ateu").

Primatologista holandês Frans de Waal - Catherine Marin

Fascinado pela natureza e pelo comportamento dos animais desde a infância, ele começou a estudar a colônia de chimpanzés do zoológico de Arnhem, no seu país natal, em 1975, durante o doutorado na Universidade de Utrecht.

Na época, pesquisas de campo feitas por cientistas como a britânica Jane Goodall já tinham mostrado que esses "primos de primeiro grau" dos seres humanos eram capazes de usar ferramentas, caçar de forma coordenada e estabelecer relacionamentos de longo prazo com seus colegas de bando, entre outras coisas.

Por meio da observação cuidadosa dos grupos sociais dos símios em cativeiro, Waal e seus colegas europeus e americanos detalharam e ampliaram essas observações iniciais, mostrando como as interações entre chimpanzés dependiam de uma compreensão arguta, por parte dos bichos, da personalidade e das intenções dos companheiros de espécie.

Waal, porém, conquistou mesmo seu lugar ao sol entre os principais primatólogos do mundo por sua ousadia conceitual e criatividade na hora de projetar experimentos. De um lado, ele se recusava a temer o "antropomorfismo", ou seja, a ideia de que seria pouco científico atribuir sentimentos e cognição similares aos de humanos a outros animais.

Sua justificativa para isso era, do nosso ponto de vista hoje, difícil de questionar: afinal, se há uma grande proximidade evolutiva entre o Homo sapiens e os grandes símios, e mesmo os demais mamíferos, não faria sentido imaginar que não há semelhança nenhuma entre nossa mente e a deles.

Retrato de uma chimpanzé
Retrato de uma chimpanzé - Frans de Waal

Com base nesse princípio, ele não tinha medo de dizer que chimpanzés buscavam a "reconciliação" depois de uma briga feia, em vez de usar algum termo supostamente mais neutro e científico para descrever as interações apaziguadoras entre os bichos.

O mesmo tipo de metáfora ousada batizou seu primeiro best-seller, "Chimpanzee Politics" ("A Política dos Chimpanzés", de 1982), livro que acabaria virando leitura popular até entre congressistas americanos.

Acima de tudo, porém, Waal era especialista em "entrevistar animais na sua própria língua", como diz um dos lemas de sua outra disciplina favorita, a etologia. Com isso, além de usar termos imaginativos e ousados para designar o que estava vendo, ele também tinha criatividade suficiente para testar essas ideias usando uma lógica relevante para as espécies que estudava.

É isso que estava por trás de um de seus experimentos clássicos, feito em parceria com sua então orientanda Sarah Brosnan e publicado em 2003.

Ao perceber que macacos-pregos apreciavam tanto pepinos quanto uvas, mas preferiam a fruta ao legume, eles testaram o que acontecia se um animal da espécie ganhava uma rodela de pepino em vez de uma uva depois que todos os seus companheiros de grupo ganhavam uvas.

Resultado: o bicho tendia a atirar o pepino nas fuças do tratador —o que levou a dupla a concluir que a espécie contava com um tipo incipiente de "senso de justiça".

Outra marca importante do legado científico do etólogo holandês é o seu relativo otimismo. O elo da nossa espécie com os chimpanzés frequentemente tem sido interpretado como algo similar ao pecado original da tradição cristã, levando em conta as altas taxas de violência (incluindo "guerras" e infanticídio) e a tirania masculina contra as fêmeas.

Levando isso em conta, estaríamos condenados a reproduzir o legado símio, só que em escala muito mais destrutiva?

Não segundo Waal. Ele sempre destacava os aspectos empáticos e gentis que também estavam presentes até nos machos alfa dos chimpanzés.

E, mais importante ainda, ele costumava lembrar que somos igualmente próximos, em termos genéticos, dos bonobos ou chimpanzés-pigmeus. Essa espécie não tem guerras e entre ela prevalecem as interações pacíficas entre bandos diferentes. De quebra, as fêmeas são socialmente dominantes e a maioria das tensões sociais é resolvida por meio do sexo.

"Nós somos a única espécie que tem preconceito com indivíduos que fogem à norma", declarou ele em entrevista recente à repórter Ana Bottallo, nesta Folha. "Primatas têm disputa de liderança e poder na hierarquia social, mas se existem indivíduos do sexo feminino que fazem sexo com outras fêmeas, elas não são discriminadas."

O pesquisador desenvolveu intenso trabalho como divulgador científico, com 16 livros publicados, inúmeras palestras ao vivo e online e aparições na TV. Suas últimas obras foram se tornando cada vez mais abrangentes, deixando de lado o foco exclusivo nos grandes símios. É o caso de "O Último Abraço da Matriarca", sobre as emoções dos animais, e "Diferentes", uma visão biológica sobre sexo e gênero.

Em 2012, Waal (junto com a colega Jennifer Pokorny) ganhou até o IgNobel, a paródia bem-humorada do Prêmio Nobel. A láurea veio por conta de um estudo que mostrou que chimpanzés conseguiam reconhecer colegas de bando só de olhar fotografias de seus traseiros.

Waal deixa sua esposa, a francesa Catherine Marin, com quem teve uma união de mais de 40 anos. O casal não tinha filhos.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.