Alexandra Moraes - Ombudsman

Jornalista e quadrinista, é ombudsman da Folha. Já foi secretária-assistente de Redação, editora de Diversidade e editora-adjunta de Especiais e Ilustrada.

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Quando a notícia falsa parasita uma apuração real

Títulos sensacionalistas usam reportagem do New York Times para ligar comunidade indígena a 'vício em pornô'

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São Paulo

No último dia 2, o New York Times colocou no ar uma reportagem sobre o impacto da chegada da internet de alta velocidade à vida dos marubos, na Terra Indígena Vale do Javari. A conexão é feita pelo serviço de satélite da Starlink, empresa de Elon Musk que oferece acesso em áreas as mais remotas.

O título original do texto assinado por Jack Nicas, que comanda o escritório brasileiro do New York Times, era "The Internet’s Final Frontier: Remote Amazon Tribes" (a última fronteira da internet: tribos isoladas da amazônia), e Elon Musk abria o subtítulo: "Elon Musk’s Starlink has connected an isolated tribe to the outside world —and divided it from within" (a Starlink, de Elon Musk, conectou uma tribo isolada ao mundo exterior –e a dividiu por dentro).

Jornais brasileiros pagam para republicar o conteúdo do New York Times. Dessa forma, a história foi parar na Folha, com o título "Starlink, de Elon Musk, leva internet a aldeia isolada na amazônia e a divide por dentro", e no Estado de S. Paulo, com "Musk leva internet e comunicação útil a indígenas da Amazônia, mas também pornografia e violência". O nome do dono da Tesla e da Starlink, com seu potencial polarizador e viralizante, costuma ser bom chamariz.

Pouco mais de uma semana depois, o New York Times colocou no ar um segundo texto sobre o assunto, também republicado pela Folha. O título vinha incisivo: "Não, uma aldeia remota da Amazônia não se viciou em pornografia".

Era a resposta a manchetes escandalosas que anunciavam o contrário, citando como fonte o próprio New York Times, apesar de o texto não mencionar vício em pornografia.

A partir de um prato de ovos onde se lê a palavra "fato", uma batedeira de bolo onde se lê a palavra "internet" faz uma grande espuma branca onde se lê a palavra "repercussão" que ocupa parte da imagem.
Ilustração de Carvall - Fernando Carvall/Editoria de Arte/Folhapress

A menção ao conteúdo adulto surgia em dois pontos. Um era a ponderação do autor sobre os "mesmos desafios que têm afetado os lares americanos há anos" e, entre eles, "menores vendo pornografia".

O outro introduzia a opinião de Alfredo Marubo, líder da Organização das Comunidades do Marubo no Rio Ituí: "Ele está mais preocupado por causa da pornografia. Alfredo disse que jovens estavam compartilhando vídeos explícitos em chats em grupo".

Foi o suficiente para veículos sensacionalistas executarem uma receita de audiência fácil: pegar o texto de uma fonte bem reputada e citá-la (credibilidade) para focar num aspecto popular ("pornô") e distorcê-lo ("vício").

O enunciado que associava erroneamente os marubos ao vício se espalhou. Estava no tabloide New York Post, no site de fofocas americano TMZ, no Instagram em espanhol da estatal russa RT, entre outros. No Brasil, estampou sites e perfis que vivem de "chupinhar".

Duas lideranças marubo ouvidas pelo New York Times na reportagem ficaram em lados opostos em relação à responsabilidade do jornal na emergência das notícias falsas.

Enoque Marubo, líder da Associação Kapy da Etnia Marubo Tamawavo do Rio Ituí, que recebera o NYT em sua comunidade, disse em vídeo que, "infelizmente, a reportagem destacou mais os pontos negativos, o que resultou na disseminação de uma visão distorcida".

Já Alfredo Marubo, que expressara sua preocupação com o conteúdo explícito, emitiu nota em que afirmava que a reportagem "nunca disse que estamos viciados em pornografia" e atacava "sites de ‘notícias’ e fofocas brasileiros". Para ele, havia "claro intuito de constranger nossa imagem coletiva perante a sociedade".

Também ouvido pelo New York Times, o advogado Eliesio Marubo diz que "quem leu a matéria (original) compreendeu o ponto do jornalista".

Segundo a nota assinada por Enoque, porém, a ênfase em pontos negativos teria prejudicado "a honra de várias pessoas engajadas no processo de conectividade da Amazônia, como da jornalista e antropóloga Flora Dutra e da filantropa Allyson Reneau". No dia da publicação da reportagem, Allyson e Enoque haviam registrado no Instagram o orgulho de o projeto ter ganhado destaque no New York Times.

Já Flora relata que, além de acusações de ter prejudicado os indígenas, chegou a receber ameaças de morte. "Ele [o repórter] destacou só os pontos negativos", afirma. Para Flora, sem essa ênfase não haveria títulos sensacionalistas. "É muita irresponsabilidade", diz. "Estamos falando de salvar vidas, de grávidas de oito meses e idosos que precisavam andar dias para ter atendimento", afirma Flora, sobre os benefícios da conexão.

No seu X, ex-Twitter, Musk atacou o jornal por "ter dito isso sobre a tribo". O "isso" era outro post que ligava ao NYT a história do vício em pornô.

À ombudsman o New York Times manifestou "total apoio à reportagem". "Quem fizer uma leitura justa verá que [o texto] mostra uma apuração sensível e matizada dos benefícios e das complicações da adoção da nova tecnologia em uma aldeia indígena que preservou sua cultura e é orgulhosa de sua história", declarou a diretora de comunicação externa do jornal, Nicole Taylor.

À espera de novas antenas intermediadas por Flora, o presidente da associação yanomami Urihi, Junior Yanomami, se disse preocupado com a repercussão. "A internet é nosso olho para vigiar as terras indígenas", afirma. Sobre eventuais problemas com o uso da tecnologia, diz Junior, "isso faz parte da vida".

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