“Eles não dão a mínima para pessoas como você. Eles não dão a mínima para pessoas como eu também.”
As frases são ditas pela médica de um posto público de saúde mental após dar a seu paciente a notícia de que seu tratamento seria interrompido, pois o posto seria fechado devido a um corte de custos na cidade. São do excelente filme "Coringa", que aconselho o leitor a assistir (caso já não o tenha feito).
Mesmo que não tenha sido essa a intenção, o filme é uma boa alegoria dos nossos tempos.
Arthur, seu personagem principal, mora mal, tem um emprego precário e utiliza o sistema público de saúde para acompanhar, também de forma precária, sua doença mental. Perde o emprego e, quase simultaneamente, o acesso ao tratamento e aos remédios, dados o cor te de custos e sua incapacidade de arcar com as possíveis despesas no mercado privado.
Arthur é um dos “perdedores”, e hipoteca sua derrota na falta de empatia “deles”: seu chefe, seus colegas de trabalho, seu suposto pai, a sociedade.
Desde o início da década, as democracias testemunham movimentos semelhantes: grandes manifestações cujo pavio é aceso por uma questão específica —o aumento das passagens de ônibus em São Paulo, da gasolina na França, e outros— crescem com a reação geralmente errada das autoridades, toma corpo sem lideranças claras e com uma pauta disforme, e como um espasmo se dilui.
É difícil dar uma solução política a esses movimentos. A política está aparelhada para “resolver” crises com pautas nítidas, dialogando com lideranças representativas estabelecidas, absorvendo suas pautas e as encaminhando da melhor forma possível.
Não há sindicatos, partidos ou movimentos políticos por trás desse novo modelo de manifestação. Não há lideranças identificáveis. E é comum a pauta inicial se desdobrar em outras e em um sentimento difuso contra o governo de turno, seja ele de esquerda ou direita.
Em 2013, os governos municipais voltaram atrás no aumento das passagens de ônibus e metrô, mas as manifestações não arrefeceram. A presidente Dilma lançou um pacote anticorrupção —uma das pautas que tomaram lugar do aumento das passagens— e a população não saiu das ruas.
A esquerda brasileira, que à época acusava os movimentos de querer desestabilizar um governo de esquerda, hoje aplaude os manifestantes chilenos. Já a direita, que sorria para a desestabilização do governo Dilma, hoje teme que os ventos chilenos soprem em direção ao Brasil e define quem lá ocupa as ruas como militantes esquerdistas. Não entendemos nada.
O caso chileno merece atenção. Um dia após seu presidente declarar que o Chile era um “oásis” na América Latina, eclodiram as manifestações, seguidas de uma reação dura do governo. Mesmo após Sebastian Piñera recuar, pedir desculpas públicas e colocar os cargos dos ministros à disposição, os manifestantes continuaram nas ruas.
Observando os dados tradicionalmente utilizados para medir o desenvolvimento de um país, o presidente chileno não pareceria errado. O Chile é uma democracia estável, tem a maior renda per capta da América Latina, seu índice de pobreza caiu de 38,6% em 1990 para 7,8%, alcança bons resultados nos testes internacionais de proficiência da educação básica e uma tem alta taxa de jovens com nível universitário. Um “país de classe média”.
Assim, o Chile não seria candidato a manifestações de indignação, ao menos se usarmos a mesma lente de sempre.
Olhando em perspectiva, também no Brasil a vida é melhor hoje do que há 20 anos, mesmo para quem vive em condição de pobreza. Mas há um ponto que corrói essa análise: o Chile ainda é um país muito desigual, como o Brasil e como vêm se tornando outros países, inclusive no mundo desenvolvido.
É a ampliação da desigualdade, aliada à frustração das expectativas de uma grande parte da população de que será possível alterar seu destino e o de seus filhos e netos, o principal fator que ameaça a coesão social e, por que não dizer, os regimes democráticos tais quais os conhecemos.
Com a economia mundial desacelerando e o Estado brasileiro em petição de miséria, é um esforço e tanto reverter essa tendência. Não se trata apenas de um imperativo moral, mas da garantia de que poderemos viver em paz conosco e nossos semelhantes.
Os governos precisam agir de forma a mostrar que, sim, dão atenção a esse enorme contingente de pessoas que estão ficando para trás a cada dia.
Não me surpreenderia se nos próximos protestos aparecessem manifestantes com a máscara do Coringa. É preciso recuperar sua confiança.
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