Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Coringa

Personagem não sonha com a riqueza dos Wayne, mas com o amor da vizinha

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Fui assistir a “Coringa”, de Todd Phillips, com um pé atrás. 

Previa que a interpretação de Joaquin Phoenix me impressionaria. E me impressionou. 

Previa também que Phillips e Silver (seu corroteirista) deixariam os espectadores com pena do Coringa. É quase inevitável quando você escolhe um vilão como protagonista e, ainda por cima, conta a história “prévia” dele —ou seja, os tristes caminhos pelos quais ele se transformou num dos inimigos mais sinistros de Batman.

Na ilustração, há um posto de gasolina todo vermelho e nele dois carros, um luxuoso prata e um roxo. O carro roxo está sendo abastecido no primeiro plano e o prata está do outro lado da bomba, no fundo
Luciano Salles/Folhapress

Como previsto, fiquei com pena do Coringa, mas não me senti chantageado por nenhum bom sentimento obrigatório, do tipo: olhe o que fizeram com ele. O filme é mais sutil do que isso.

Nunca fui sensível à ideia de que os crimes possam ter causas que os justifiquem. Devia ter 14 ou 15 anos quando li “O Ofício de Viver”, o diário de Cesare Pavese, o escritor italiano que se suicidou em 1950, aos 41 anos. 

Os adolescentes, em geral, tendem a levar os suicidas especial e injustamente a sério: Pavese me parecia mais profundo do que ele era. Hoje, acho sobretudo que ele se atribuía uma importância excessiva e que tudo teria mudado no pensamento dele se ele tivesse a chance de amar uma mulher e ser amado por ela —como seu azar no amor se transformava sempre em misoginia vingativa, isso não tinha chance de acontecer. 

Enfim, o que importa aqui é que, numa nota de 17 de abril 1946, Pavese acha inaceitável a ideia de “transformar as culpas em doenças”. “Nada contra o formulário psicanalítico —que enriqueceu a vida interior— mas tudo contra os caras de pau que se servem dele para desculpar sua preguiça apática e, quando ouvem que currar meninos é o resultado de uma experiência errada que tiveram com um saca-rolhas, acreditam que essa seja uma justificativa. Nada disso. Não se devem currar meninos.”

Lembro-me dessa reflexão de Pavese (e concordo com ela) a cada vez que surge a possibilidade de atribuir as malfeitorias de alguém à sua condição de doente ou de desfavorecido e oprimido. Logo
associo: mesmo assim, é proibido currar meninos.

A polêmica de Pavese não é com a psicanálise nem com o marxismo, mas com a própria ideia de que existam causas de um crime que sejam excludentes ou justificativas, ou seja, causas à vista das quais o crime seria desculpado ou nem sequer seria crime.

A história do Coringa (assim como ele mesmo se lembra dela) é triste de chorar. Portanto, ele seria um bom exemplo para pensarmos na relação causal entre o crime e a desvantagem social.

O problema é que a dita relação é, no mínimo, um quebra-cabeça sobre o qual as ciências sociais e psicológicas se debruçam (sem grande sucesso) desde o fim do século 19, quando nasceu a criminologia.

Nesse quebra-cabeça, resiste uma ideia simples: se você acredita que haja uma relação necessária entre o crime e a desvantagem social, você acredita, portanto, que o ressentimento seja o destino inevitável que é reservado àqueles que têm menos. Ou seja, os que têm menos vão querer se vingar daqueles que têm mais.

Nem Marx nem uma grande parte dos socialistas utopistas do século 19 pensavam assim. Ao contrário, eis a frase que muitos deles repetem: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. Ou seja, a igualdade não era um ideal; as necessidades (os desejos) podiam ser diferentes.

À condição que todos sejam socialmente incluídos, tocar a vida no apartamento do Coringa não significa viver no ressentimento dos Wayne e de seus palácios. O que o próprio Coringa pede, aliás, da mãe, de Wayne e da vida? Muito mais reconhecimento e amor do que participação nos lucros.

Minha lembrança automática e antiga da citação de Pavese talvez explique meu entendimento do filme, mas o fato é que, na minha leitura, “Coringa” não aposta no ressentimento como consequência inevitável da desordem e desigualdade do mundo.

De novo, o Coringa não sonha com a riqueza dos Wayne: sonha com o amor da vizinha ou com o riso que suas piadas provocariam. Certo, entre loucura, desfavorecimento e abandono, a cama está sempre armada para o nascimento do ressentimento, no qual muitos dos melhores se perdem. E é uma pena: as sociedades deveriam jogar melhor suas cartas, sem se dar ao luxo de desperdiçar os Coringas.

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