É possível usar uma combinação de inteligências artificiais (IAs) para mapear as próprias preferências e criar extrapolações aplicáveis a virtualmente qualquer assunto. Não se trata de tarefa simples. Muitas preferências nascem no ato da escolha, enquanto o modo de apresentação das opções afeta as deliberações.
Esses percalços impõem simplificações, como assumir que ordeno preferências de maneira lógica (se prefiro "A" a "B" e "B" a "C", irei preferir "A" a "C"), e considerar que a forma como pessoas parecidas comigo decidem frente a uma questão que eu desconheço dá indícios sobre como eu decidiria se instado a tanto.
Um sistema construído sobre essas premissas nunca seria perfeito, mas nada impede que nos desse a impressão de decidir tão bem quanto a gente. Operando, seria possível colocar os mais de 160 milhões de votantes no Congresso e outras instâncias decisórias formais e informais. Cada um poderia deliberar digitalmente sobre os assuntos que quisesse, deixando ao seu avatar a tarefa de extrapolar para todo o resto.
A democracia direta é um sonho cheio de percalços. O mais óbvio é que apenas os interessados numa pauta tendem a aparecer na "hora H", o que favorece decisões contrárias aos interesses da maioria. Sistemas de extrapolação decisória eliminariam essa distorção, além de reduzir os custos do Estado, mitigar negociações pouco republicanas e acelerar processos decisórios.
Na minha concepção, tais IAs deveriam ter papel limitado às instâncias decisórias informais. Porém, é razoável supor que muitos veriam na tecnologia uma oportunidade para eliminar o Legislativo inteiro. É aí que poderíamos meter os pés pelas mãos.
O papel da política não é apenas dar vazão às aspirações da maioria, mas estimular a construção de acordos sociais frente a interesses contraditórios, consolidando consensos provisórios. Parece pouco, mas ainda é isso que nos salva do autoritarismo. Quando disso nos esquecemos, corremos o risco de mergulhar na barbárie, seja ela tecnocrática ou não.
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