Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Os avanços na compreensão de ideias que a mente não consegue pensar

Sei que o assunto não é dos mais triviais, mas certamente é dos mais instigantes

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Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Antes de seguir, feche os olhos por uns segundos. Concentre-se.

Represente em sua mente o infinito. Não deu? Então que tal o passo a passo que vai da construção à aparição de uma ideia em sua mente? Também não? Vamos tentar outro exercício: imagine-se com uma pessoa; ela está com muita dor. Você se conecta afetivamente, sofre por ela. Como é essa dor? Ela se irradia ou é mais concentrada, ela traz sentimentos de desamparo ou é experimentada como manifestação fisicamente isolada? Como é o desamparo dela?

Organoide cerebral visto por um microscópio eletrônico, com os neurônios tingidos de magenta
Organoide cerebral visto por um microscópio eletrônico, com os neurônios tingidos de magenta - Jesse Plotkin/Johns Hopkins University/Divulgação

Essas situações descrevem três manifestações no domínio das noções que não podemos representar.

O infinito habita a categoria das abstrações, como muitos outros substantivos. Porém, carece da propriedade essencial para a geração de representações mentais: limites. O pensamento é uma realidade inquestionável que, até certo estágio de maturação, permanece tão inacessível à introspecção quanto a filtragem glomerular realizada pelos rins. As experiências alheias geram identificação, porém esta não é suficiente para superar a incomunicabilidade da vida interior.

Cada uma dessas noções é excepcional por um motivo. O infinito é um exemplo de conceito que dá nó pela própria natureza do que representa. Ao mesmo tempo, ele tem função matemática inegável. Há outros exemplos, como números que multiplicados por si mesmos dão resultado negativo e partículas teóricas, que são adotadas pelos físicos a despeito jamais terem sido observadas. A dúvida em cada um desses casos é: será que a entidade em foco tem natureza real ou será que é mero recurso conceitual? Eu chamo as noções que nos desafiam com essa dúvida de entidades de existência dúbia.

As etapas formativas do pensamento não sofrem desse problema. Elas existem com toda certeza. A questão é que são inacessíveis à experiência, ao mesmo tempo em que não apenas tomam parte em sua constituição, como a definem. É isso que cria perplexidade: como é que os pensamentos parecem emanar de mim mesmo, ao mesmo tempo em que justamente me falta capacidade para flagrá-los na manjedoura? A indagação fundamental que evocam é: será que podemos criar um referencial para mitigar esse mistério introspectivo? Será que dá para ter algum insight que transfira esse papel às células do cérebro de maneira convincente? Atribuo a essas etapas e a tudo mais que possa caber aqui o nome de matéria escura do pensamento.

Já as experiências alheias são relacionáveis de maneira indireta, mas diretamente inacessíveis. A questão fundamental que elas nos levam a articular é parecida, mas não idêntica à anterior: será que podemos criar um sistema de referências compartilhadas para as experiências introspectivas próprias e dos outros? Chamei o enigma que veste essa carapuça de o inacessível relacionável.

Entidades de existência dúbia, matéria escura do pensamento e inacessível relacionável; será que existem meios de avançar frente a seus mistérios? Creio que uma das marcas do progresso intelectual seja a crescente viabilidade do sim como resposta em todos esses casos.

As seções seguintes trazem exemplos sucintos que corroboram essa perspectiva e, mais amplamente, a minha tese de que o momento intelectual atual é caracterizado por avanços inéditos no domínio das ideias que não conseguimos pensar. Sei que o assunto não é dos mais triviais, mas certamente é dos mais instigantes. Vamos nessa.

Noções puramente teóricas que se revelaram parte fundamental da realidade

Imagine uma fila de números. Escolha qualquer um e o eleve ao quadrado. Percebe como o resultado é positivo? Esses números que nos veem à mente são chamados de reais. Pois há uns cem anos foram descobertos números que multiplicados por si mesmos geram resultado negativo. Eles receberam o título de imaginários —não porque são bons de se imaginar, mas pela oposição aos números reais, estes sim mais adequados às mentalizações intuitivas. Sua história inicial confunde-se com a das tentativas de os desconsiderar, mas, se assim o fosse, não contaríamos com boa parte das tecnologias atuais, incluindo a internet.

Números imaginários combinados a números reais geram números complexos. A física moderna faz amplo uso deles. Tal como as partículas teóricas, a premissa de uso é que são úteis e não que necessariamente descrevam a realidade diretamente. Faz sentido, dado o nó mental instaurado.

Há quem chame estes números de a parte imaginária da física quântica, artefatos para a geração de resultados numericamente reais. A novidade foi a demonstração de que essa dimensão imaginária de fato diz respeito a algo real.

"Na física, números complexos eram considerados entidades de natureza puramente matemática. A despeito de terem um papel nas equações da mecânica quântica, eram tratados como meras ferramentas, algo para facilitar os cálculos dos físicos. Agora, demonstramos de maneira teórica e experimental que existem estados quânticos, físicos, que só podem ser discriminados de outros por meio da participação indispensável dos números complexos" (Alexander Streltsov, 2021).

Essa demonstração é contígua à atribuição do Prêmio Nobel de física (2022) para o trio de cientistas que demonstrou que o entrelaçamento quântico é parte da realidade. O entrelaçamento é a propriedade das partículas que se relacionam de tal forma que, ao tomar conhecimento do estado de uma, consigo saber imediatamente o que está acontecendo com as outras. Ela também foi acompanhada pelo surgimento dos primeiros experimentos rigorosos com reversão temporal, algo absolutamente contraintuitivo. "Pela primeira vez, nós mais ou menos temos uma máquina do tempo, que permite ir em ambas as direções do tempo" (Sonja Franke-Arnold, 2023). Adicione um grão de sal à surpresa pela compreensão do experimento.

Ainda que o exemplo inicial —o infinito— permaneça na esfera dos conceitos matemáticos de manifestação incerta, é surpreendente a quantidade de noções irrepresentáveis mentalmente que vêm sendo descobertas. Isso reforça a ideia de que a intuição não é mesmo muito adequada para a compreensão da natureza fundamental da realidade. Números imaginários que o digam.

Uma 'proxy' à natureza inacessível do pensamento em formação

Há décadas, sabemos que as ideias que surgem na mente são constituídas em etapas. Tanto é assim que lesões cerebrais localizadas afetam aspectos específicos, empobrecendo as representações. Esse processo foi estudado pelos mais diversos ângulos e levou a resultados curiosos, como a mensuração da velocidade do pensamento.

Demora mais ou menos meio segundo para que uma experiência visual se forme, desde a estimulação luminosa de nossas retinas. A temporalidade interior, mais do que qualquer outro fenômeno, explica porque o debate científico sobre a existência do livre-arbítrio tende a se confundir com o da natureza em camadas das representações mentais. Evitemos por enquanto.

Um dos assuntos centrais das neurociências contemporâneas é o reconhecimento das trajetórias informacionais pelas diferentes áreas do cérebro, mas é preciso considerar que, em estrito senso, as conclusões apenas nos informam a geolocalização dos processos mentais, nada esclarecendo sobre os porquês de determinada ideia que nos surge à consciência ser mais enviesada para este lado ou para aquele.

O esclarecimento da questão fundamental por trás de toda experiência mental resiste há séculos: se não há ninguém dentro da gente decidindo o que vamos pensar, se nosso cérebro não é uma espécie de boneca russa infinita, em que a gestão das intenções vai sendo repassada para seres cada vez menores, como é que as dimensões de cada pensamento são determinadas e eles adquirem sua orientação? O que acontece nas fases blindadas à introspecção?

Há muitas ideias interessantes surgindo, sendo a mais atraente a de que os neurônios votam. Isso mesmo que você leu. Do reconhecimento de imagens à construção de abstrações, a antiga função do homúnculo parece substituída por tipos bem particulares de plebiscitos neurológicos, que acontecem sucessivamente, desde as primeiras fagulhas de cada manifestação intencional.

Na década de 1970, Vernon Mountcastle descobriu que uma das formas de organização do córtex é por meio da formação de colunas de neurônios. Na visão do lendário neurocientista, estas se espalhariam por todo o córtex, reduzindo a cacofonia interna, mais ou menos como na democracia, em que a maioria leva tudo. No caso das colunas corticais, isso significa que as informações convergentes seriam propagadas para as outras áreas cerebrais, enquanto as divergentes ficariam a ver navios. Ou seja, os processos complexos aconteceriam pela combinação das resultantes das interações dentro destas colunas, substituindo homúnculos por intrincado mecanismo baseado em células nervosas orientadas por consensos provisórios.

O momento atual é caracterizado pelo surgimento de algumas propostas baseadas nos princípios de Mountcastle e outros para explicar essas etapas formativas do pensamento.

A teoria dos mil cérebros é um exemplo disso (2019). Seu idealizador, Jeff Hawkins, propõe que células nervosas originalmente surgidas para a identificação e objetos ("grid cells") assumem este papel frente às representações abstratas, "bit" a "bit", em determinadas colunas corticais.

De acordo com ele, os diferentes aspectos de uma representação mental são segmentados e processados dentro de uma miríade dessas colunas, onde a definição dos fragmentos vencedores se dará pela identificação automatizada de coalizações que minimizem as divergências e maximizem as convergências.

Assim, o que acontece enquanto o pensamento está sendo formado? As células estão votando aquilo que irá entrar e passando para frente os fragmentos vencedores. Usando qual critério? O da máxima convergência. O que acontece quando o plebiscito é fechado? O vencedor leva tudo. E o pensamento surge na consciência.

A hipótese levanta mais dúvidas do que oferece evidências, mas o que importa considerar é que, junto com outras, avança rumo à dimensão impensável do pensamento.

Seu aspecto mais profundo é considerar que as representações mentais não são feitas apenas de acréscimos absorvidos conforme os circuitos cerebrais vão sendo percorridos pela informação. Elas são coalizações, definidas por um sistema de representação, que merece uma discussão detalhada. Mas isso fica para o artigo sobre o problema do livre-arbítrio.

'Qualia', o problema difícil da filosofia da mente

O artigo mais cultuado da história da ciência cognitiva não foi fruto do trabalho de um time de neurocientistas, biólogos moleculares ou matemáticos computacionais. O artigo foi escrito por um filósofo chamado Thomas Nagel e não envolveu qualquer tipo de experimento ou descoberta.

Em "Como é Ser um Morcego?" (1974), Segundo Nagel, o que define a consciência de um organismo é o fato de contar com algo em sua realidade privada que possa ser considerada sua maneira de ser, o que por sua vez exige que ele se manifeste para si mesmo. Existe algo como ser um morcego? Morcegos têm essa espécie de câmara de eco pela qual sua existência se manifesta para si mesmos? Se sim, morcegos são conscientes; caso contrário, não são. É justamente por essa câmara de ecos ser aparentemente incompatível com a arquitetura das redes neurais artificiais do tipo ChatGPT, que afirmo que a ideia de que esses algoritmos têm ou vão adquirir consciência é equivocada.

O problema que ele está discutindo, da acessibilidade à experiência alheia, é conhecido como o "problema difícil da consciência" (Chalmers, 2007) e tem em seu centro a especificidade das experiências íntimas, que é conhecida como "qualia". O desafio imposto não pode ser enfrentado diretamente, pelo estabelecimento de um acesso direto à experiência alheia, como naquela ideia de transmissão de pensamentos via sensores, anunciada por Elon Musk para o delírio dos seus seguidores acríticos. Esse não será o caminho, uma vez que essas experiências são consequências diretas e inalienáveis dos cérebros individuais em que se manifestam e das memórias que lhes servem de base. Externalizá-las seria como extrair o movimento das pernas do corredor.

Mas e, se ao invés de tentar descrever o "qualia" diretamente, focássemos a rede associativa que é estimulada a cada nova experiência? Será que, se construíssemos uma base de associações segmentada por idade, sexo, condições neurológicas e tudo mais, poderíamos captar ecos do impenetrável? Essa é a ideia por trás da teoria do espaço qualitativo ("quality space theory").

"A qualidade subjetiva é determinada pela comparação com outras experiências. Se conseguirmos determinar quão similar uma experiência é em relação a todas as outras, talvez cheguemos a uma descrição completa da mesma" (Lau et al., 2023).

A busca por mapear a qualidade subjetiva como um sistema de diferenças vem levando a estudos sofisticados, em que os sujeitos são instruídos a fazer associações entre as suas experiências, dentro e fora de cápsulas de ressonância magnética.

Por exemplo: o sujeito é exposto a um estímulo vermelho e deve usar um dispositivo de seleção de cores para colocar aquilo que está vendo em uma fila de estímulos, usando todas as combinações possíveis de vermelho, verde e azul (RGB).

Em outro teste, ele deve fazer o mesmo com a experiência de morder uma maçã; depois, com a experiência de mastigá-la e de engoli-la. Em outra bateria, deve definir o mosaico de associações afetivas evocadas pela experiência de engolir a maçã, em oposição às frutas que intercalou por proximidade (por exemplo, pera e nectarina). E assim por diante.

Recentemente, 426 sujeitos portadores de visão típica e 207 daltônicos participaram de um estudo massivo de percepção associativa de cores, gerando resultados tratados com uma técnica de mapeamento de correspondências conhecida como GWOT ("Gromov-Wasserstein Optimal Transport"). Isso deu origem a um mapa de relações entre experiências íntimas sem precedentes.

Segundo os autores, a nossa experiência mental das cores é muito próxima da dos outros sujeitos que enxergam normalmente, ao passo que as pessoas que têm limitações no processamento de cores não apenas enxergam menos estímulos, elas efetivamente veem um mundo diferente.

"Nossos resultados das estruturas do 'qualia' é consistente com a ideia de que as propriedades relacionais deste são compartilhadas de maneira universal pelos indivíduos neurotípicos. De maneira intrigante, nossos resultados sugerem que pessoas de visão atípica têm uma estrutura de experiências de cores diferentes —e não meramente limitada pela ausência de alguma de suas dimensões" (Kawakita, et al., 2023, no prelo). Não se trata de nada definitivo, mas certamente é um bom termômetro dos avanços no campo daquilo que não pode ser representado.

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