Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias
Descrição de chapéu Mente

Intelectual pós-moderno, intelectual metamoderno

Negação à maneira de Foucault dá lugar à busca de sentido na metamodernidade

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Toda época tem seus intelectuais típicos e também atípicos, que chamam mais a atenção e assim veem crescer suas chances de entrar para a posteridade, quando são fixados aos topos de página, como jogadores de destaque naqueles antigos álbuns de figurinhas do futebol.

A própria natureza dessa dinâmica leva a distorções, já que a distintividade intelectual dos eleitos não cabe na capa do álbum em que cada época é retratada. Michel Foucault serve de exemplo. De longe, é tido como o nome paradigmático da pós-modernidade. De perto, divergiu de quase todos os outros notáveis do período. Ressalva feita, o que importa mesmo é que representa o contraponto ideal ao modelo de intelectual atualmente em ascensão.

Mulher usa máscara com o rosto de Michel Foucault durante ato em defesa da cátedra Foucault da PUC-SP - Fabio Braga - 25.mai.15/Folhapress

O tipo emblemático é John Vervaeke, psicólogo com especialização em filosofias tradicionais do Oriente, que tem tudo para se tornar ainda mais famoso do que seu colega de Universidade de Toronto, Jordan Peterson, o qual entrou na guerra cultural com os dois pés e hoje trabalha por cliques do lobby cristão.

Essa passada de bastão não significa que racionalistas tenham sido varridos do mapa. Clássicos nunca saem de moda, como prova Steven Pinker, autor de "O Novo Iluminismo", que vem militando pelo nosso modelo de sociedade, a partir da noção de que a espécie humana nunca viveu condições melhores —uma perspectiva factualmente incontroversa. Conforme a roda das transformações técnicas gira, a aderência à razão cresce, até que a humanidade desapareça, o que um famoso modelo conceitual aponta que poderá ocorrer ainda neste milênio (entenda aqui).

É plenamente aceitável conceber o curso do tempo estritamente por este ângulo, compartilhado pelo Instituto pelo Futuro da Humanidade (Universidade de Oxford), principal núcleo de pensamento dedicado aos nossos problemas coletivos de longo prazo. Minha ressalva é que, ao fazê-lo, a chave para se acessar a receptividade a tendências comportamentais fundamentais da modernidade é perdida, já que estas nem sempre estão alinhadas ao avanço da produtividade e outras KPIs (indicadores-chave de desempenho) usadas para se medir o progresso.

Podemos falar de 1968 como o ano da Apolo 8 ou das barricadas parisienses. Não há certo ou errado, mas vale lembrar que boa parte do que chamamos de "natural" hoje em dia não o seria sem os protestos de maio e o zeigeist do período em que os criadores do Google eram criança.

A metamodernidade é uma tendência na esfera das mentalidades. Se o seu interesse sobre as transformações da nossa era recai apenas sobre a trilha do progresso técnico, ela não deve te interessar. Por outro lado, se te estimula saber o que acontece no plano das aspirações, concepções e desejos enquanto avançamos pela trilha da inteligência artificial, então pode ser uma boa conhecer o que inquieta John Vervaeke e como ele vem tratando disso.

John Vervaeke, professor da Universidade de Toronto, durante o simpósio internacional A Democracia no Século XXI - Tomas Princ/Institut H21

Michel Foucault, arqueologia, genealogia e sofrimento

Aqui vai um teste essencialista de adequabilidade social: pergunte a qualquer pessoa se ela é humanista. Se a resposta for não, desconfie. Foucault não tinha grande pendor para a adequação e também era declaradamente anti-humanista. Não foi o primeiro nem o mais célebre. Quem popularizou essa posição foi Friedrich Nietzsche (1844-1900), sua maior influência, que dizia que "a força é a moralidade dos que se destacam da massa".

Foucault compartilhava com Nietzsche a ideia de que o poder é a questão humana central, bem como o desprezo por todo tipo de mandachuva, apesar de ter sido uma autoridade acadêmica, um professor do Collège de France que não participou ativamente dos movimentos sociais do período, como muitos de seus colegas. Era um defensor radical da liberdade, tanto de ser quanto de agir, em sentidos distantes da atual "liberdade de expressão". Certa vez, causou polêmica ao pleitear a libertação indiscriminada de todos os presos —um pesadelo conservador.

Do ponto de vista anti-humanista, sua maior ressalva se dava quanto à noção de um "ser humano" que se manteria constante a despeito do contexto. "A alma é a prisão do corpo", disse certa vez, criticando a noção de essência, que via como clausura conceitual e mesmo prática.

O intelectual francês tampouco acreditava que o curso dos acontecimentos seguisse regras estáveis. Para ilustrar isso, tomo a liberdade de me posicionar. Eu discordo de certos princípios por trás das narrativas futuristas de Ray Kurzweil e Yuval Harari, como o de que isso que chamamos de mundo (o Antropoceno) avança tal como em um game dividido em fases, em que os pontos acumulados levam a desafios cada vez maiores.

A minha visão é que transformações relevantes tendem a ser seguidas pelo reforço de alternativas e reações diretas de oposição, que desmantelam a linearidade. Tendências civilizatórias podem regredir, a despeito da inegável evolução que os dados mostram na escala dos séculos, com exceções remotas como o colapso da Era do Bronze, da Grécia ateniense e outras.

Construir hipóteses sobre o futuro pela lógica do acúmulo linear do conhecimento técnico, tal como se uma coisa puxasse a próxima, sem refluxos e redefinições de rota, parece-me ingênuo, mas eu sigo firme na crença de que as coisas se conectam, ainda que de modos não lineares.

Para Foucault, nenhuma das duas perspectivas está correta. A sucessão na cultura seria dominada pela descontinuidade. Nada de dialética e muito menos de linearidade; a lógica verdadeira é a da ruptura. O paralelo contemporâneo que me ocorre é com aqueles apps de geração de números aleatórios baseados no decaimento de algum isótopo (urânio, por exemplo), que materializam a natureza verdadeiramente randômica das coisas em uma escala que não pode ser compreendida pela intuição (para entender, acesse).

Ler Foucault é como folhear um guia de elocubrações anti-intuitivas. Para ele, não há fatos, só interpretações. Essa noção alia-se ao seu rechaço do continuísmo em uma nova maneira de pensar sobre assuntos de grande relevância, como loucura e sexualidade. Saem de cena as definições do que são e como se manifestam essas dimensões da existência humana e entram as tentativas de reconstruir o processo pelo qual vieram a adquirir os sentidos que tomamos como incontroversos hoje em dia. Ele chama isso de arqueologia.

Em um segundo momento de sua carreira, Foucault radicaliza esse posicionamento e passa a falar do nascimento de atributos e concepções. Por exemplo, a homossexualidade, na sua visão, seria uma invenção dos séculos 18-19, não porque ignorasse que relações homossexuais eram comuns muito antes disso, mas porque essas eram concebidas de maneiras muito distintas até então, especialmente do ponto de vista de sua relação com o poder.

O mesmo se aplica à loucura, que teria ganhado contornos distintivos, clínicos, conforme passou a servir para demarcar o poder médico e das famílias sobre aqueles que não se encaixavam. Ele chamou essa abordagem de genealógica.

Acredito que seja a noção mais relativista jamais tratada com seriedade na história da psicopatologia. Eu mesmo gastei muita tinta nisso, na época em que tinha a esquizofrenia como tema principal de pesquisa. Sei que parece bastante esquisito à luz do princípio atual de que devemos ser minimalistas quando não estivermos discutindo evidências, mas o clima era outro e o debate intelectual na área da saúde contava bem mais.

John Vervaeke

Assim como é difícil classificar o que Foucault fazia como uma coisa só, seja ela história, filosofia ou sociologia, também é para John Vervaeke. O rechaço a autoridades institucionais aproxima-os, bem como o interesse pela emancipação. Porém, essas inquietações aparecem de maneira muito menos aguda em Vervaeke, e o pano de fundo epistemológico (a relação com o conhecimento) é oposto.

O psicólogo canadense acredita que uma versão ampliada das ciências cognitivas pode nos tirar do obscurantismo, o qual ele não enxerga pelo prisma foucaultiano, da alegada miopia para os jogos de poder que perpassam a nossa vida e nos levam a assumir que certas coisas são dadas quando na realidade são construídas, mas pelo da falta de sabedoria que nos impede de viver melhor.

Vervaeke não é um neoiluminista estrito, mas tampouco é um relativista. Ele está mais para um intelectual-cientista não fundamentalista, posição que representa a grande tendência em ascensão neste momento. Seu tema central é a "crise de sentido" na sociedade contemporânea, o qual se tornou hit mundial com a pandemia.

Recentemente, o New York Times publicou o especial Não o Freud do seu pai sobre o fato de a psicanálise estar vivendo um novo boom. A linha-fina é autoexplicativa: "Uma nova geração de analistas e pacientes está abraçando o pai da psicanálise, em revistas, memes e muitas horas no sofá". Essa tendência é parte de um movimento maior, que engloba a explosão no uso dos enteógenos e a espiritualidade cultivada como uma variação da inteligência emocional (para entender, acesse).

A reação é fruto de um par de fatos incontestes. O primeiro é que a farmacologia hardcore falhou retumbantemente no tratamento das mazelas da alma. A coisa chegou ao ponto de sair um artigo no New York Times (que chamo de ‘barômetro global’) dizendo que a hipótese central no tratamento farmacológico da depressão —a de que os efeitos dos antidepressivos mais populares ocorre pela ação nos receptores serotonérgicos— está errada.

Isso foi precedido por pilhas de papers de orientação disruptiva, inspirados pelo fato de que a resposta clínica aos tratamentos farmacológicos existentes é pífia em boa parte dos casos. Hoje, o que se vê é que centenas de estudos duplo-cego, randomizados e com placebo estão sendo solenemente ignorados pelo novo consenso, o que para mim ensina muita coisa sobre como a ciência de fato funciona.

O segundo é que os índices de depressão e ansiedade nunca foram tão altos. Esses índices já vinham subindo, mas explodiram na pandemia (para entender, acesse), como vimos aqui no Brasil. A crise de sentido está relacionada à falha das abordagens hardcore no manejo da saúde mental fragilizada em todo o Antropoceno. É dela que se alimenta o pavor de que a inteligência artificial domine o mundo e outras fantasias coletivas catastróficas. Qualquer inversão desse problema, que é o que se discute nas páginas do Lancet e do New York Times, é secundária.

A crise de sentido não é uma abstração, mas uma forma de se referir ao mal-estar que emerge nessas fantasias, além do medo fundamentado da solidão, do desemprego e da animosidade interpessoal, os quais são imensamente potencializados pela base ansiogênica e depressogênica sobre a qual se constroem as visões de mundo na terceira década do século 21.

O projeto mais importante de Vervaeke é justamente a arqueologia e a genealogia desta crise. Porém, em vez de publicar um livro, ele optou por um compêndio estruturado de digressões em vídeo, que distribuiu na internet.

Enquanto Foucault era um daqueles intelectuais públicos que raramente saía da academia —neste ponto, era absolutamente conservador— Vervaeke é metamoderno. Ele se envolve diretamente com a circulação de suas ideias para atingir mais gente e não deve estar muito preocupado com o que pensam os puristas.

O compêndio de Vervaeke traz nitidez à principal diferença entre a pós-modernidade e a metamodernidade: enquanto o autor francês anunciava a ausência de sentido, o nosso contemporâneo canadense interessa-se pela sua construção. Na passagem de um para o outro, o niilismo cede espaço para o idealismo pragmático como forma de entendimento e ação.

Vervaeke é também um militante na causa da redução da estupidez humana —a qual, na sua visão, não se confunde com a do sofrimento mental, mas sim com falta de autocrítica, externalização de impulsos hostis e incapacidade de entrar em estados de "flow". Ele investiga sistematicamente o uso de psicotecnologias para reverter esse estado de coisas, em direta oposição a Foucault, que veria nisso a expressão acabada do jugo sobre o corpo e a mente.

Um desenvolveu uma filosofia da resistência, o outro, de alternativas ao status quo emburrecido. Um denunciou biopolíticas, o outro incorpora psicotecnologias. Um perseguiu experiências-limite, o outro, experiências reveladoras. Um empunhava a bandeira da sexualidade, o outro parece assumir que sexo não é mais a questão. Um morreu na epidemia de Aids, outro sobreviveu à pandemia de Covid-19.

Um era denso, complexo, genial. O outro é simples, profundo e inspirador.

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