Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Descrição de chapéu Mente tecnologia

Sociedade digital leva desafio da estupidez humana a novo patamar

Conheça novo modelo para compreender características da burrice e seus impactos atuais e futuros

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No começo do século passado, Charles Spearman descobriu que o desempenho de crianças e adolescentes nas diferentes disciplinas acadêmicas está correlacionado. Ainda que se diga que quem vai bem em exatas costuma ir mal em humanas e vice e versa, a dicotomia consistente se dá mesmo entre os vão bem e os que vão mal em quase tudo. O psicólogo inglês partiu deste insight para criar o teste de QI, que mais tarde se tornou sinônimo de inteligência mensurada.

Nas 12 décadas desde o seu lançamento, o QI subiu no Ocidente a ponto de os índices médios da década de 1910 serem tomados como rebaixamento cognitivo hoje em dia. Essa subida, de cerca de 30 pontos em pouco mais de um século, é conhecida como efeito Flynn, em homenagem ao cientista que a mapeou na década de 1990.

Cérebro em imagem de ressonância magnética - Nomad_Soul/Adobe Stock

Segundo James Flynn, melhora na alimentação, menos infecções, urbanização, ampliação da educação básica e uso de testes inspirados no QI para diferentes propósitos, gerando efeito de aprendizado, ajudam a explicar o fenômeno.

Hoje em dia, parece estar em curso a primeira queda no QI desde que este começou a ser medido, o que acredito que tenha a ver com a algoritmização do pensamento. Voltarei ao tema em breve.

Por enquanto, considere que o quociente de inteligência disparou desde o seu surgimento, impulsionando o desenvolvimento científico-tecnológico e intelectual, que responderam aumentando a demanda pelo uso de abstrações nas dinâmicas produtivas e no exercício de funções sociais elementares, o que puxou ainda mais a subida do QI, em uma espécie de círculo virtuoso de pensamento e ação.

Entre as décadas de 1970 e 1990, firmou-se a noção de que há facetas da adaptabilidade psicossocial independentes do QI, posto que situadas na esfera do intuir e não na do raciocinar. Isto levou ao surgimento do campo da cognição social, onde se estuda a capacidade de prospecção de intenções alheias, e ao da inteligência emocional, que quantifica aptidões emocionais.

Nos últimos anos, a instrumentalização de psicotecnologias religiosas também passou a fazer parte deste pacote. Seu crescimento é uma das decorrências da digitalização, a qual ajuda a explicar um fenômeno ainda maior: a redução da ignorância (desconhecimento) ao redor do mundo.

O quadro é animador: a evolução cognitiva é real. ‘Burrice’ e ignorância vêm caindo, ao mesmo tempo em que a ideia de que a socialização segue princípios que podem ser aprendidos tornou-se hegemônica.

Mas, se é assim, por que será que muitos, eu inclusive, desconfiam desta narrativa? Será que existe alguma dimensão intelectual tão importante quanto inteligência e conhecimento, cuja trajetória não pode ser apresentada de maneira tão entusiasmante? Saúde a estupidez humana.

As leis básicas da estupidez, segundo Carlo Cipolla

Em "The Basic Laws of Human Stupidity" (as leis básicas da estupidez humana, 1988/2019), Carlo Cipolla argumenta que existe um tipo de sujeito que se distingue por comportamentos que produzem desfechos negativos para si mesmo e para os outros.

Essas pessoas não são nada generosas, mas tampouco se reduzem a pilantras comuns, colecionando vantagens a todo o tempo. Sua marca distintiva é a habilidade para se atolar no lamaçal, levando consigo quem estiver em volta. Tipo Carla Zambelli em campanha eleitoral.

A capacidade de criar o caos e se perder nele é independente do nível educacional e do poder de raciocínio. Estupidez é falta de sabedoria, o que significa que devemos conceber o comportamento intencional a partir três eixos de processamento: inteligência-burrice, conhecimento-ignorância e sabedoria-estupidez.

A estupidez não se reduz à incapacidade de decodificar intenções e emoções, ainda que tenha ligação com este tipo de deficiência. Sua essência, subentende-se do modelo de Cipolla, combina compreensão pouco aderente da realidade com confiança inabalável para agir a partir de visões idiossincráticas.

O perigo mais insigne dos estúpidos é que nem sequer podem ser tratados como inimigos por seus pares, sem que estes corram o risco de reprimendas morais e percam apoio. Ao mesmo tempo, a aptidão à ação facilita sua conversão em massa de manobra —um problema ainda maior. Não é à toa que tantos filmes tratam nazistas como pessoas estúpidas. Além de revanchismo histórico, medo, intolerância e ódio, Hitler beneficiou-se de hordas e mais hordas de idiotas.

Essa forma de pensar a estupidez leva a várias externalidades e torna a tese de Cipolla para lá de interessante, mas também conduz a becos sem saída. O mais óbvio deles é que o desfecho de grande parte das nossas interações é influenciado pelo acaso.

Um exemplo clássico é a série "A Pantera Cor de Rosa". O Inspetor Clouseau é uma espécie de nazista burlesco às avessas. Ele faz tudo errado, mas as coisas dão sempre certo. Ele dá um baile nos tipos desprezíveis, sem a menor competência para tanto. Em uma das sequências mais hilárias da história do cinema, leva seu amargurado chefe, Charles Dreyfus, à loucura. Literalmente.

Definir características imanentes a partir de seus impactos comportamentais, como faz Cipolla, implica assumir forte determinismo na relação entre ação e consequência, o que o personagem de Peter Sellers nega toda vez que respira.

Do mais, a socialização dos estragos é um desfecho comum, mas não obrigatório, da estupidez. A conclusão é que seria preferível partir de dimensões internalizadas para dar contornos a este traço central à existência humana, tal como é feito com a baixa inteligência.

A estupidez como um problema de alinhamento e priorização

O primeiro tipo de atividade cognitiva que surge em nossas vidas é o registro das coisas que se apresentam, o que leva à interiorização do domínio do que é. Em seguida, surge o do como as coisas devem ser, que inclui as restrições, incentivos e juízos de valor que conhecemos a partir dos outros e os que inventamos.

Em sua manifestação mais simples, esta dimensão da vida mental apenas alinhava direcionamentos. Alguns são morais, como o princípio de ajudar o próximo; outros, fisiológicos, como o de não pegar friagem; há também os educacionais, os energético-tensionais e muito mais.

Conforme a capacidade prescritiva evolui, passa a nos desafiar com "trade-offs". Ajudo o coleguinha que caiu no pátio enquanto fugíamos do temporal inesperado de inverno ou mantenho-me fiel à norma de não pegar friagem? Aos 4 anos, essa é uma questão bastante séria. No resto da vida também.

Considere, por exemplo, os objetivos ganhar bem e viver de maneira satisfatória. É sabido que dinheiro impulsiona a qualidade de vida, porém o sujeito que passa todas as horas do dia pensando no assunto dificilmente vive bem. Onde está o corte em que seguir pensando em dinheiro reduz-se a uma falha lógica? Ele não existe, o que não nos exime de assumir que o milionário ancião, que trabalha 14 horas por dia, sempre à beira de um infarto, carece de sabedoria.

O que define a estupidez assim concebida é a tendência a perder de vista os direcionamentos prescritivos que mais importam, em função de incentivos de menor relevância. Suas manifestações são várias e podem ser distinguidas por critérios específicos. Um é de impacto geral; outro é de compartilhamento potencial.

Por exemplo, o tipo que pisa fundo para chegar rápido em casa, ganhando 10 minutos a mais de tranquilidade, os quais passa imerso em adrenalina, faz uma estupidez que se define mais pelos impactos negativos compartilháveis com os outros motoristas e pedestres do que pela subversão de incentivos que decorre da priorização do tempo disponível para relaxar sobre a fenomenologia do relaxamento efetivo.

Outro sujeito sem família sabe que investigações clínicas por vezes não se mostram frutíferas e que falsos positivos têm mais chances de surgir quando estas são intensificadas. Movido por estes incentivos racionalmente defensáveis, mascara uma dor de estômago recorrente por quatro meses, tomando Omeprazol, só para descobrir um câncer em estado avançado, em uma visita ao pronto-socorro.

A estupidez é de maior monta, mas seus impactos compartilháveis são menores. Fundador de startup despeja o dinheiro captado junto aos fundos em tráfego pago para tornar a empresa conhecida, quando o produto sequer está finalizado. Estupidez de baixo impacto social e impacto pessoal indeterminado.

Professor titular em rota de descoberta de um novo princípio científico não avança nesta direção para seguir publicando 30 papers por ano sobre qualquer coisa que aparecer pela frente. Estupidez de impacto pessoal relevante e impacto social indefinido.

Executivo atropela a todos por uma promoção, em área na qual sua sobrevivência depende de conexões duradouras. Estupidez de impacto mediano, parcialmente compartilhado. Irmãs rompem para sempre em disputa por herança de que não dependem e passam o resto dos seus dias lamentando a distância uma da outra. Estupidez compartilhada de alto impacto interpessoal.

Hominídeo com polegar opositor desenvolve maneiras de drenar os recursos do planeta até este se tornar inabitável. Estupidez de impactos individuais positivos e impactos societários catastróficos, conhecida dos íntimos como "tragédia dos comuns".

Para compreender o diferencial da estupidez, é preciso manter em vista o fato de que herança, volume de publicação, notoriedade da startup, a imagem do executivo e o progresso da sociedade importam para os envolvidos e, assim, podem ser racionalmente defendidos. O que não faz sentido é deixar que se tornem fins em si mesmos, quando deveriam ser os meios.

Na essência da distorção característica da estupidez reside um tipo particular de problema de identidade, tal como se uma versão mequetrefe de nós mesmos substituísse o que mais importa por circunvoluções intermináveis e simulacros. Isto leva a tentativas desesperadas de alinhamento de incentivos, as quais são popularmente chamadas de "busca de sentido".

Nos últimos anos, o fenômeno vem sendo potencializado pela sensação de estar exposto a uma miríade de opções com desfechos pouco discrimináveis, em áreas como profissão, relacionamentos e formas de expressão.

A "versão mequetrefe de nós mesmos, que substitui os fins pelos meios" viceja na sociedade digital, onde a profusão de oportunidades de baixa fricção tanto estimula a criação de trajetórias únicas quanto reforça a crise de incentivos.

Quer aprender a programar? Quer fazer teatro sem sair de casa? Que tal um casinho virtual? Você também pode se conectar com o seu eu interior por este app de ioga e até fazer uma nova faculdade por LMS. Ah, e se pintar alguma dúvida existencial busque ajuda no Instagram. É fácil ser estúpido em um mundo assim.

Usando o novo conceito de estupidez para entender o problema fundamental da IA

Outro dia eu estava em um debate com um colega das neurociências que falou: "a inteligência artificial não é artificial, nem inteligente". Eu concordo que não faz sentido chamar a inteligência, que está definida pela performance, de natural ou artificial —estas são propriedades dos sistemas performáticos.

No entanto, este mesmo raciocínio mostra que tampouco está certo dizer que a IA não é inteligente, afinal, o GPT-4 e outros aparecem no estrato superior do QI, aplicam os axiomas da racionalidade tão bem quanto PhDs em exatas, são capazes de passar nos testes profissionais mais difíceis do mundo, produzem textos com qualidade similar a um ser humano pouco criativo, mas culto, além de dominarem as principais línguas indoeuropeias. A inexatidão propositiva que desponta neste caso e em outros é fruto da alusão ao QI, quando a demanda conceitual é pela noção de estupidez.

Note que não estou dizendo que a IA seja estúpida. Os incentivos aos quais responde não podem ser cotejados à luz de sua relevância pessoal. A questão é que a inteligência artificial multiplica a estupidez humana semivoluntária.

A história correu o mundo. Homem processa companhia aérea. Seu advogado prepara a petição usando o ChatGPT. Ela sai impecável, exceto por alinhavar citações fabricadas e decisões inexistentes. Enquanto o algoritmo aplicou adequadamente regras de otimização discursiva (para conhecê-las, acesse), o advogado assinou embaixo de uma peça estúpida, que tomou os argumentos favoráveis ao pleito como seu mais alto objetivo, sem considerar que a atribuição de verdade por parte do juiz é mandatória.

Conforme intensificamos a produção intelectual desconectada das nossas dinâmicas de alinhamento de incentivos, aumentamos a velocidade com que a estupidez é introduzida no mundo. Isto é especialmente verdadeiro para os mais novos, que intuem o fenômeno e assim impulsionam a "crise de sentido", que dá o tom da metamodernidade.

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