André Liohn

Fotojornalista especializado na cobertura de guerras, vencedor da medalha Robert Capa

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Descrição de chapéu terrorismo 11 de setembro

Mundo parece ignorar danos que legitimação do Talibã causará às mulheres afegãs

Visita de delegação do grupo radical à Noruega coloca Ocidente em xeque entre ajuda humanitária e validação do regime autoritário

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Ela tinha 12 anos e havia chegado em casa com sua mãe quando o pai ordenou que fosse se lavar –um homem especial viria visitá-la. Não entendeu exatamente por que deveria tomar banho naquela hora do dia, mas sabia que não adiantaria questioná-lo. Sentiu-se sozinha, e a sensação de terror a fez chorar.

Menos de um ano depois, perdeu o primeiro filho. Aos 14, o segundo, sempre após ser agredida e abusada por quem a levou de casa. "Desde que me lembro como gente até meus 40 anos apanhei de homens: dos meus tios, do meu pai, de vizinhos. Todos os homens da minha vida me batiam só porque nasci mulher."

A ativista Heda Khamoush, durante reunião em Oslo, na Noruega, exibe fotos de mulheres recentemente detidas no Afeganistão
A ativista Heda Khamoush, durante reunião em Oslo, na Noruega, exibe fotos de mulheres recentemente detidas no Afeganistão - Stian Lysberg Solum - 24.jan.22/NTB/AFP

Aos 15, deu à luz um menino, Joseph. Apenas três anos depois, o homem tomou o filho e a jogou para fora de casa, pedindo divórcio, sem nunca ter explicado o motivo. Aos 44, a escritora Mariam Rasouli, nascida em Herat, no oeste do Afeganistão, vive em Trondheim, no centro da Noruega, onde também trabalha como assistente social num projeto de acolhimento de crianças refugiadas separadas de suas famílias.

Em 22 de janeiro, um avião vindo de Cabul aterrissou em Oslo. O regime do Talibã havia sido oficialmente convidado pelo governo norueguês para discutir a crise humanitária do país: A ONU alerta que, até abril, 97% da população afegã poderá estar abaixo da linha de pobreza. Nove milhões de pessoas, entre as quais 1 milhão de crianças, estão sob risco de morrerem de fome caso não recebam ajuda humanitária.

Em Oslo, durante os três dias de visita, a delegação diplomática formada por 15 homens encontrou representantes de organizações de defesa dos direitos humanos e representantes de governos que combateram durante 20 anos, como os da Alemanha, da França e dos Estados Unidos.

Como nunca havia acontecido antes, os assim chamados diplomatas, até pouco tempo atrás terroristas, radicais religiosos, assassinos capazes de explodir carros-bombas em mercados cheios de civis, foram alvo de pressão e ouviram acusações da diáspora afegã na Noruega, além de terem presenciado protestos nas ruas e ouvido insultos de manifestantes na frente do hotel onde os encontros aconteceram.

Se mulheres como Mariam não pudessem denunciar os abusos cometidos pelo regime hediondo dos talibãs, ou se víssemos apenas a postura jovial, a voz calma e a narrativa elaborada de Amir Khan Muttaqi, chanceler do grupo, certamente, nós, brasileiros, vítimas de um líder obsceno, ficaríamos em dúvida se não estamos num Brasilistão Bolsonarista pior do que o emirado criado à força pelos terroristas.

As mulheres afegãs que protestaram contra a visita descartam que o compromisso com mudanças esteja na agenda da facção. Para elas, mesmo reconhecendo o iminente desastre humanitário, o Talibã, desde que reassumiu o controle do Afeganistão, tomou a população como refém e usa o sofrimento de suas vítimas como isca para que a comunidade internacional legitime seu regime, forçando o mundo a escolher entre exigir que meninas frequentem escola ou impedir que elas não morram de fome.

Durante 20 anos de guerra, os talibãs deixaram claro que não seguirão qualquer demanda do Ocidente, e neste beco sem saída a comunidade internacional parece estar ignorando os possíveis danos que a legitimação do regime teocrático causará às mulheres do país.

Yama Wolasmal, correspondente da TV nacional norueguesa, especialista em Oriente Médio e opositor dos talibãs, diz que a visão do grupo sobre as mulheres é algo isolado no islã e que, sem terem perdido o DNA da violência, os radicais entenderam que não conseguirão governar cometendo atos hediondos, castigando homens que se barbeiam, mulheres que não usam burca, cortando as mãos de quem rouba ou usando o estádio de Cabul como palco para apedrejar, chicotear e executar mulheres e opositores.

Para Mariam, a afirmação de que o Talibã está isolado na sua visão sobre as mulheres não encontra respaldo na realidade. Para ela, o islã é, em sua essência, contra a liberdade das mulheres, e o Talibã, muito pior do que o descrito por Wolasmal. A limitação da mulher imposta pelo islã em todas as esferas é um pré-requisito para que o grupo terrorista possa manter seu poder político, econômico e cultural.

Sem a opressão às mulheres, o governo terrorista desapareceria. Se as mulheres fossem libertadas, as normas islâmicas seriam dissolvidas, as mulheres seriam equiparadas aos homens e, assim, o poder dos homens sobre as mulheres desapareceria. Não importa o que o governo norueguês diga ou que as intenções tenham sido boas. Como o próprio chanceler talibã disse: ter ido à Noruega já é uma vitória.

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