André Liohn

Fotojornalista especializado na cobertura de guerras, vencedor da medalha Robert Capa

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

André Liohn
Descrição de chapéu Rússia

Putin não está totalmente errado

Caso invada a Ucrânia, presidente russo terá almas mortas a vender, como personagem de Gógol

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em julho de 2021, Vladimir Putin publicou o texto "Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos", no qual insistia que os dois povos são na verdade apenas um e que a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível ao lado da Rússia.

Não faltaram análises desqualificando os argumentos elaborados pelo presidente russo como delírios neoditatoriais que desrespeitam a vontade do povo ucraniano de se aproximar da Europa, salientando que a soberania política e a integridade nacional ucraniana devem ser respeitadas por Moscou.

É fato que uma grande parte do povo ucraniano deseja se distanciar da influência russa —principalmente da influência política, que, para muitos, em especial a população da parte oeste do país, pode transformar a Ucrânia numa nova Belarus. Mas totalmente errado Putin não está.

Pôster do presidente russo Vladimir Putin é usado como alvo em trincheira ucraniana próxima a região de conflito com separatistas em Lugansk - Anatolii Stepanov - 22.jan.22/AFP

À parte de qualquer outra questão, russos e ucranianos, assim como outros povos do leste europeu, são eslavos. A Rússia é o país no mundo com a maior população eslava —a Ucrânia ocupa a terceira posição.

Trata-se de um grupo etnolinguístico de sociedades que falam as várias línguas eslavas, com uma rica história que abrange 13 séculos. "Slava" significa glória, e "slovo", palavra. O que muitos não sabem é que a origem etimológica do termo "escravo" vem da palavra "eslavo".

O termo remonta ao século 9º, quando populações eslavas do mar Negro eram capturadas e comercializadas por muçulmanos da Península Ibérica e do norte da África para trabalho forçado.

Do comércio de pessoas eslavas nasceu o adjetivo e substantivo latino "sklava", que passou a ser usado como sinônimo de "cativo". O termo se popularizou e foi adotado em línguas e culturas ao redor da Europa, tornando-se, por exemplo, "slave" em inglês e "escravo" em português.

Desde então, o termo continua sendo usado para descrever o indivíduo desumanizado que está ou foi privado de sua liberdade, sendo submetido à vontade de outrem e definido como propriedade de alguém.

Apesar de todos os erros cometidos, de qualquer transformação histórica, de toda a luta contra os crimes e preconceitos praticados contra aqueles que sofreram com essas condições, ainda hoje, mil anos depois, em todo o mundo, os povos um dia "escravizados" continuam sendo marginalizados, tratados de forma pejorativa e como inferiores.

As conquistas sociais do pós-Guerra não conseguiram eliminar o classismo europeu e, num continente onde todos os tipos de escravização e discriminação têm uma longa história, os europeus orientais, a maioria dos quais eslavos, continuam na base da hierarquia.

Embora países do centro-leste europeu tenham sido oficialmente aceitos na União Europeia há mais de uma década, poloneses, tchecos, eslovacos, eslovenos, croatas e búlgaros continuam sofrendo discriminação nos ditos países "ocidentais".

Inicialmente dispostos a trabalhar mais ganhando menos, migrantes do leste eram vistos como desejáveis e rotulados como "invisíveis", devido à pele branca. Nos últimos anos, os discursos públicos contra a migração de trabalhadores dessas regiões, especialmente poloneses, tornaram-se mais hostis, no contexto da crise econômica de 2008 e, posteriormente, na Inglaterra, durante e após o brexit.

Mesmo que um dia sejam aceitos na União Europeia e na Otan, os ucranianos —principalmente aqueles que desejam migrar para países ricos da Europa— dificilmente serão tratados de forma diferente, e talvez seja esse o ponto em que Putin, sem acertar, também não erra.

Nikolai Gógol, descrito no texto de Putin como um patriota, escreveu "Almas Mortas". O autor, que morreu louco, havia pensado no livro como o primeiro de uma trilogia que deveria ser nada menos que uma Bíblia para uma nova Rússia. A história se passa durante o período feudal russo, que durou até o final do século 19. Narra os tormentos morais do personagem principal, Tchitchikov, misteriosamente interessado em comprar as almas de escravos mortos.

Corruptos, violentos, mentirosos e interessados apenas em defender seus próprios interesses, os senhores feudais russos tinham escravos que faziam parte da sua fortuna. Eram contados como gado e valiam como propriedade, não como seres humanos.

Apesar de não estar certo e sem estar totalmente errado ao evocar as ligações históricas entre russos e ucranianos, Putin, caso continue usando da força e da corrupção para defender seus interesses e caso invada a Ucrânia, também terá muitas almas mortas de eslavos para vender. Assim como os senhores feudais da Rússia descrita pelo "patriota" Gógol.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.