Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Angela Alonso

Para garotas como Ágatha, o país prometeu muito e cumpriu pouco

Liberalismo foi incapaz de converter em realidade a fantasia de Mulher-Maravilha da menina

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

“A vida é o mais básico dos direitos humanos”, disse o presidente na ONU. “Discurso de estadista”, tascou O Antagonista, de bate-pronto. Foi o contrário, mas isso não surpreendeu ninguém. 

Bolsonaro apenas explicitou suas crenças antiquadas, alucinadas e raivosas e esclareceu a que humanos cabem os direitos: a policiais que impõem a ordem pública à bala e a cristãos que apenas reconhecem uma ordem moral, a de sua versão da Bíblia.

No segundo círculo talvez coubessem as crianças abatidas no “fogo cruzado”. Mas, entre baleados e atiradores, o presidente tem lado. E não é o de Ágatha, que nem mereceu sua atenção, sem foco em Nova York ou em parte alguma. Embora pai de menina de mesma idade, ele não as viu como equivalentes porque não são. Laura e Ágatha pertencem a mundos desde sempre apartados.

Garotas de oito anos ambas, apenas isso as iguala. 

Ágatha é encarnação recente de linhagem ancestral. Morreu na idade em que se concedia cidadania a seus antepassados, a partir de 1871. A Lei do Ventre Livre, que aniversariou 148 anos neste sábado (28), prometia libertar os nascidos dali em diante quando cumprissem os 8 anos. Mas ficou nisso, na promessa.

Para os descendentes de escravos, o país prometeu muito desde então —e cumpriu bem pouco. 

Nas últimas décadas, abriram-se oportunidades para subirem na vida pela educação. O avô de Ágatha exprimiu a crença nessa possibilidade. Sua estratégia de “trabalhador” e “cidadão” foi apostar num futuro para a neta “estudiosa”, via “aulas de inglês, de balé, de tudo”. Aposta liberal em trabalho, cidadania e educação. Liberalismo incapaz de converter em realidade a fantasia de Mulher-Maravilha da menina.

A esperança, que já teve lastro, foi corroída. O Brasil contemporâneo está fechando as estreitas portas abertas para ascensão social dos negros pela educação, vide o desmonte de políticas de ação afirmativa nas universidades públicas. E está autorizando a restrição de seus direitos civis, ao expandir a política de encarceramento e execução sumária de negros pobres ou dos “quase pretos de tão pobres”, do verso de Caetano Veloso.

A salvação para meninas como Ágatha poderia vir do cristianismo dos discursos ministeriais, mas, como resumiu um ex-bolsonarista, este é “um governo miliciano-gospel”. 

O lado religioso não salva, o outro se alista —para seguir com a letra de “Haiti”— na “fila de soldados, quase todos pretos/ dando porrada na nuca de malandros pretos/ (...) Só pra mostrar aos outros quase pretos (...)/ Como é que pretos, pobres e mulatos/ E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”.

Ágatha será mais um número na série estatística de 58 crianças baleadas em comunidades cariocas a partir de 2007, 6 delas mortas desde que Witzel assumiu com sua política de “tiro na cabecinha”.
Seu assassinato comoveu muitos, não a todos. O filho 03, de insensibilidade à toda prova, postou vídeo jocoso, com menininho armado, numa brincadeira, é provável, que seu pai fez consigo. 

Armas não são brinquedo nem salvam. O Atlas da Violência do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2019 o demonstra. Nos 14 anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento, houve um crescimento anual de 5,44% no número de homicídios no país. Já nos 14 anos seguintes à sua promulgação, a taxa decresceu para 0,85% por ano. 

Se o governo visasse estancar a violência, o método seria desarmar a população.

Mas a aflição dos bolsonaristas não é com crianças mortas, é com a “perversão” das sobreviventes via “escola sem partido”, “ideologia de gênero”, “marxismo cultural”, “kit gay”. Obsessão com sexualidade e armas que se retroalimentam.

Embora tenha corrido para se diferenciar do show reacionário de Bolsonaro na ONU, o governador de São Paulo comparte esse modelo de lei e ordem. Sua propaganda na TV, com policiais em uniformes ostensivos e perseguições armadas, imita pateticamente seriados norte-americanos. Deslumbre com os Estados Unidos idêntico ao do presidente e apenas ligeiramente mais elegante que o estilo Rambo de seu correlato carioca.

O palco da tragédia de Ágatha foi o Rio, mas a violência policial e o extermínio sumário e sistemático de negros e pobres —crianças e jovens sobretudo— acontece no país todo, o tempo todo.

As Bíblias de Bolsonaro, Witzel e Doria têm o mesmo versículo: “Vinde a mim as criancinhas, pois delas é o reino dos céus”. Muitas lá chegarão graças às “balas perdidas” que seus governos autorizam disparar.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.