Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Vidas que importam

Negros e jovens executados no Rio são candidatos à vala comum do olvido nacional

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O ditado diz que a morte a todos iguala. A Covid referendou o adágio, assolando tanto a pobres, negros, velhos, feios, quanto a ricos, brancos, jovens, lindos.

Ceifou senhoras e senhores, crentes e ateus, famosos e anônimos. Impediu visitas, proibiu funerais, roubou as despedidas. Todos equivalentes no luto coletivo covidiano. Assim deu a este país tão desigual a ilusão da igualdade.

Com a morte pandêmica sobressaindo, as "normais", no sentido de mais frequentes, saíram das vistas. Quase nem se falava delas.

Mas, com a alta da vacinação e a baixa dos óbitos, retornou a vida quase "normal", no sentido de rotineira. Com ela voltaram à tona as antigas mortes habituais. Ao contrário das pandêmicas, elas nada têm de democráticas.

Alheia ao provérbio, a morte corriqueira, como a vida corriqueira, distingue e hierarquiza. Isso se viu em dois episódios recentes de mortes coletivas. Ambas trágicas e súbitas. Cada qual pertence a um dos tipos de óbito mais frequentes entre jovens brasileiros, os acidentes e as violências.

O acidente levou a rainha da sofrência. A perda comoveu enorme legião de fãs, que sabe de cor seus versos e seus percalços. Todos órfãos como o menininho que ficou sem mãe.

Uma dor transfronteiriça. O assunto foi para o top trend mundial do Twitter. Marília Mendonça tinha 26 anos e 36 milhões de seguidores no Instagram, como descobriram as Redações, postas às pressas a descobrir a figura icônica. A maioria da elite cultural, que conhece tantas produções artísticas de minorias mundo afora, nunca ouvira Marília cantar.

Seu funeral teve a dignidade reservada aos ídolos, com desfile em carro aberto, homenagens em redes, rádios, tevês. Já Abicieli Silveira, Henrique Ribeiro, Geraldo Martins e Tarcísio Pessoa, mortos com ela na queda do avião, foram pouco mencionados e logo saíram de foco. Como se suas mortes fossem menos chocantes.

A outra morte coletiva recente é dessas que também choca e sai nos jornais, mas se parece mais com a dos companheiros de viagem de Marília que com a dela própria. Morte de anônimo.

Aconteceu no complexo do Salgueiro, lá onde rico não pisa. E não foi acidente. Eram nove, nos quais 22 homens dispararam 1.514 tiros. Não foi arma de bandido, foi da polícia. O executado mais moço tinha nove anos menos que Marília.

Morreram Kauã Brenner Gonçalves Miranda, que tinha mãe, Rafael Menezes Alves, que tinha irmã, e Jhonata Klando Pacheco Sodré, casado havia nove anos.

Carlos Eduardo Curado de Almeida, além da viúva, deixou três órfãos. De Ítalo George Barbosa de Souza Gouvêa Rossi, David Wilson Oliveira Antunes, Douglas Vinícius Medeiros de Souza e Igor da Costa Coutinho, se soube menos. O que se sabe ao certo é que foram todos humilhados, torturados, desfigurados, mutilados e jogados num mangue. Élio da Silva Araújo, segundo a irmã, foi degolado. Tudo obra dos braços da lei.

Não é coisa de morro carioca, é coisa do Brasil. Os negros e jovens executados no Rio se parecem com Jhonny Ítalo da Silva, que nesta terça (30) foi algemado e arrastado por policial motoqueiro em São Paulo.

Lembrou os tempos da escravidão se disse. Mas assim o evento soa um anacronismo. E não é. Muitos negros e pobres são tratados assim cotidianamente, no presente.

Marília morreu, mas, como estampou a camiseta de Neymar, não será esquecida. Os demais são candidatos à longa fila para o enterro na vala comum do olvido nacional.

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