Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Canário, Pombo e Jabuti

Se a cultura popular do futebol se bifurcou, a alta cultura pendeu para um lado

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A eleição acabou, mas no jogo para decidir quem representa o país a bola segue rolando.

A discórdia ganhou a forma da camisa da seleção. A Copa deu a oportunidade para democratas, sobretudo de centro e esquerda, resgatarem a canarinho. No primeiro jogo, a equipe de transição, o presidente e o vice se fizeram fotografar trajando a amarelinha. Entraram de sola na disputa pelo que tinha se tornado marca bolsonarista.

A estreia do Brasil na Copa levou a clivagem política para o gramado, escalando Richarlison e Neymar, dois nomes bem brasileiros. As redes sociais balançaram mais que as dos estádios, em comparações. Jogo virtual, mas muito concreto, no qual cada jogador vestiu um país.

Richarlison, lado de Neymar, comemora gol durante partida contra Servia - Xinhua -24.nov.22/Wang Lili

O do bolsonarismo ficou com o menino Ney, que prometera dedicar gol a certo palmeirense macambúzio. Mas, em vez de enfiar a bola nas redes, arrebentou o tornozelo. O outro lado enalteceu Pombo em verso, prosa e imagem: seus pés formando o L. Além da beleza do lance, ressaltaram-se as qualidades cívicas do atleta, da campanha pela vacina ao pagamento de impostos. Neymar foi tido e havido como craque de outro esporte, o alpinismo social, traidor das origens. Pombo, como quem as honra, representa e defende, por palavras e gestos –inclusive monetários. Dois artilheiros, dois modelos de nação, o egoísta e o solidário.

Se a cultura popular do futebol se bifurcou, a alta cultura pendeu para um lado. O Jabuti teve júri variado em raça, gênero e geração e premiou assuntos -vários relativos à escravidão -e autores politicamente quentes. Aliás, autoras. As mulheres abocanharam 13 dos 20 jabutizinhos e uma levou o jabutizão, o livro do ano -quinta vez em 29 edições do prêmio.

A Flip tomou mesmo rumo. Nem parece a feira na qual choveram reclamações quando Fernando Henrique Cardoso foi falar de Gilberto Freyre. A deste ano foi crítica do mito da democracia racial. Maria Firmina Reis, autora de romance pioneiro na tematização da escravidão, foi a homenageada, embora não seja, assim, um Machado de Assis.

Do mesmo modo, editoras, museus, festivais e assemelhados têm privilegiado as dimensões étnicas e de gênero na triagem de artistas e obras. Nos espaços de cultura erudita, posições simbólicas e de prestígio até outro dia dominadas por brancos homens bem-nascidos viraram de ponta-cabeça.

A atitude, contudo, não se propaga tanto quanto cadernos e comentaristas de cultura levam a crer. Não recobre nem mesmo todo o perímetro da cultura. Afora dos nichos moderninhos, há uma escalação inteira de artistas no lado bolsonarista do campo.

Isso sem contar a elite social mais efetiva, que não vive de prestígio, mas de fazer dinheiro. Boa parte desses bolsos bem fornidos joga no time de Neymar. São os que assistem a partida em sala vip no Qatar, como o sócio da Domino's Pizza, e se exprimem no seu mesmo linguajar xucro.

A ofensa a Gilberto Gil suscitou enxurrada de cartões vermelhos, mas evidenciou que para uma ala do topo social sua obra resplandecente não significa nada. Como nada significa para a arquibancada que toma chuva nos acampamentos intervencionistas - aliás, uma réplica de táticas dos "comunistas" MST e MTST. Vivem noutro país, com outros valores e outros ídolos.

Lula disse no discurso da vitória que não há dois Brasis. Mas o grande desafio de seu governo será abrigar sob o mesmo escudo estes dois times de brasileiros, que se desprezam mutuamente.

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