Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

O canto dos cines

Curioso como, onde fenece um cinema, jamais vicejam bons frutos

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Minha mãe aponta algo à esquerda do carro e demoro a enxergar, pois meus olhos têm que fazer a transição entre a calçada iluminada pelo sol fino do inverno petropolitano e o interior penumbroso do edifício —à primeira vista, vejo apenas uma tela cinza recortada na parede.

O cenário, enfim, entra em foco. O mezanino continua intacto, colunas ao fundo, um lustre lá no alto, as fileiras de poltronas com os assentos levantados, como se em breve fosse começar a próxima seção do Cine Capitólio, mas sessão nenhuma vai começar, pois na parte de baixo da plateia as poltronas deram lugar aos carros, dezenas deles, por todos os lados: R$ 8,00 a primeira hora, R$ 4,00 as subsequentes, “cartão só débito”. Não sei se o insólito da cena me remete mais a “8 1/2”, a que meus avós assistiram ali, em 1965, ou a “Mad Max”.

Daria um bom livro de fotografia: “Como Morrem os Cinemas”. Retratos da glória e da tumba, no mundo todo, a serem clicados por Sebastião Salgado ou Robert Polidori. Este aqui virou estacionamento. Aquele outro é Igreja Universal. Este é um pet shop. Aquele, supermercado. Agência bancária. Lojas Americanas. Mundoplast —tudo em plástico pra você!

Curioso como, onde fenece um cinema, jamais vicejam bons frutos. Nunca ouvimos “Tá vendo essa cerejeira, aí no parque? Era a bilheteria do Cine Majestic”. “Aqui, onde agora funciona este jardim da infância, era o Cine Lumière”. “Essas piscinas públicas foram cavadas no chão da plateia em que assisti pela primeira vez a ‘Os Fuzis’, do Ruy Guerra”. 

Uma S-10 embica no estacionamento, acende os faróis e antes que desça a rampa ilumina por um instante as poltronas do mezanino: é como se depois de muitos anos um filme estivesse sendo projetado ali dentro. 

Não posso deixar de pensar que nós, na rua, somos esse filme, passando no retângulo da porta da garagem. (De fato, perto de onde agora está a entrada cinzenta da garagem ficava a tela branca do cinema.) O filme é a história das últimas décadas: primeiro o VHS, depois o DVD, então os downloads, o streaming, as telonas dando lugar às telinhas, as plateias aos sofás, os drops de anis às pipocas de micro-ondas.

Não quero ser hipócrita, faço parte das estatísticas. Vou cada vez menos ao cinema, assisto a cada vez mais filmes e séries em casa. Tento me convencer de que está tudo certo, não importa como os filmes são vistos, importa é que sejam vistos, mas há algo de despudorado naquele mezanino pairando sobre os carros, algo que parece transcender o audiovisual. É como o cadáver insepulto de uma época empalado na entrada da época seguinte, a alertar os passantes para as novas leis em vigor. 

Vejo Trump comemorando a vitória da virilidade automobilística sobre a veadagem de Hollywood. Vejo Bolsonaro esbravejando contra a subvenção estatal da arte degenerada. Vejo um pastor neopentecostal encontrar na Bíblia alguma passagem inconteste em que Deus advoga contra os perigos da sétima arte. 

O mais triste de tudo: vejo manobristas engatando a primeira e a ré sob o mesmo teto em que Marcello Mastroianni beijou Claudia Cardinale. E assim termina nossa história, num “fade out” de fuligem e monóxido de carbono.

Erramos: o texto foi alterado

Por erro de digitação, o título da coluna foi inicialmente grafado como 'O canto dos cisnes', e não dos 'cines'. O erro já foi corrigido.

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