Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Fora, Waze comunista!

Dirigir sem jamais perguntar o caminho, o último poder do homem branco

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

A eleição do Trump, a vitória do “brexit”, o recrudescimento do racismo, da xenofobia e da intolerância, Putin, Erdogan, Le Pen e Bolsonaro, tudo culpa do Facebook; o álbum de figurinhas do senhor Zuckerberg amplifica a voz dos imbecis, divulga fake news, agrupa os radicalismos em piscinas de bolhinhas e encaminha o mundo para a cucuia —dizem. 

Acredito, porém, que há outra ferramenta tecnológica com maior influência no atual murundu político global para a qual não estamos dando qualquer importância: o Waze.  

Veja, nenhum movimento fascista tem sucesso se não houver à sua disposição um exército de homens insatisfeitos, homens emasculados que precisam desesperadamente ter suas virilidades reafirmadas.

O que foi o século 20 senão um contínuo ataque à virilidade masculina? Mulheres ganharam o direito de votar, de se desquitar e de nos mandar às favas. O homem branco, hétero e cis —a farinha de qualquer massa fascista— viu com desespero a ascensão dos negros, dos gays, dos trans, a crescente hegemonia do politicamente correto. 

Há poucas décadas um homem branco, hétero e cis paupérrimo ainda podia se sentir minimamente poderoso, pois tinha assegurado seus direitos inalienáveis —que certo candidato à Presidência pretende resgatar— de maltratar a esposa, de espancar os filhos, de enforcar um ou outro estrangeiro, de vez em quando. 

Tudo isso acabou. Chegamos ao século 21 e o que restava ao homem branco, hétero e cis? Onde ele afirmava a sua última gota de potência? No carro, ao se perder e se recusar a pedir informação. Pra muitos de nós, estar perdido e não pedir informação era o ápice da masculinidade possível. 

O sujeito numa contramão escura da Vila Guilherme, tentando chegar ao Butantã, a mulher ao lado arrancando os cabelos, “Valdemar, pelamordedeus, pergunta na padaria!” e o Valdemar lá, movido pelo desejo cego de autodeterminação, botando pra funcionar os genes herdados de seus antepassados navegadores, que por sua vez os herdaram de Moisés, perdido no deserto e recusando-se a aceitar qualquer orientação que não viesse diretamente de Javé. 

O Valdemar podia ser pobre, sub do sub, infeliz, mas perdido e sem pedir informação ele se sentia capitão da sua nau. O “Duci” de seu Chevrolet. Horas depois —às vezes dias— o Valdemar finalmente chegava ao Butantã. Frustrado? Não! Rejuvenescido, crente em sua força, seguro de sua masculinidade. E um homem seguro de sua masculinidade não se junta às hordas fascistas, não violenta mulheres, não chuta quem tá caído. 

Perder-se e não perguntar o caminho era um purgante da imbecilidade masculina. Os gregos tinham a tragédia como fonte de catarse: nós tínhamos a turronice ao volante —o que era ainda melhor do que a tragédia grega, pois na tragédia o herói invariavelmente sucumbia ao seu destino, enquanto o homem perdido no carro quase sempre o atingia— ou morria tentando.

Aí surge esse algorítmico subversivo chamado Waze. Ele manda o homem sair da pista expressa e ir para a pista central. Depois manda sair da pista central e voltar pra pista expressa. Depois retornar à pista central. Na frente da esposa do homem. Na frente dos filhos do homem. E o que pensa o homem, eunuco, curvado sob o látego do GPS? “Basta! Isso foi longe demais! ‘Make America great again’! Vamos fazer o Brasil grande, de novo!”. 

Sugiro banirmos o Waze imediatamente. Antes nos perdermos na Vila Guilherme do que perder, definitivamente, os rumos da civilização.

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