Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Sempre haverá tomates, Poldi

Às vezes um casal precisa de espaço

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Ilustração
Publicada neste domingo, 24 de fevereiro de 2019 - Adams Carvalho/Folhapress

"Preciso ficar sozinha se eu quiser compreender a mim mesma", diz Nora ao marido Torwald, momentos antes de abandoná-lo na última cena de "Casa de Bonecas", peça escrita por Ibsen em 1879. Impossível saber se Bibi também buscava a solidão como via para o autoconhecimento ou se simplesmente encheu-se do pescoço enrugado de Poldi, dos restos de grama babada nos cantos da sua boca, do casco impenetrável no qual o cônjuge se fechava (assim como Torwald) toda vez que se sentia ameaçado. Só o que sabemos é que, de uma hora pra outra, Bibi abriu a boca e (assim como Nora) terminou com a relação. Estavam juntos havia 90 anos.

"O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio", escreveu Paulo Mendes Campos. O amor em questão acabou num cercadinho do zoológico de Klagenfurt, na Áustria, onde as duas tartarugas gigantes de Galápagos, hoje com 123 anos, vivem desde 1976.

Bibi e Poldi nasceram em 1897. Quando Ibsen morreu, em 1906, já tinham nove anos, mas ainda não eram um casal, pois as tartarugas gigantes de Galápagos não pensam nesse tipo de coisa até a segunda década de vida. A relação só começou nos loucos anos 1920, quando ambos já haviam sido levados para um zoológico na Suíça; em 1976, quando chegaram à Áustria, seguiam juntos. 

Bodas de ouro são raras entre seres humanos e ainda mais entre tartarugas gigantes de Galápagos, não muito chegadas à monogamia. Bibi e Poldi, porém, gostavam de ficar longas horas ao sol, de comer tomate juntos e de dormir com os cascos colados. Assim passaram pelo crash de 1929, pela ascensão e queda de Hitler, o Maracanazo de 1950, a chegada do homem à Lua, o colapso da URSS, a virada do milênio, o 11 de setembro. 

Em novembro de 2011, porém, no auge de suas 114 primaveras, Bibi chegou por trás do Poldi e deu-lhe no casco uma dentada tão furiosa que chegou a arrancar sangue. Os funcionários do zoológico de Klagenfurt resolveram separá-los por um tempo: às vezes, depois de 90 anos, um casal precisa de espaço.

Aos poucos, o pessoal foi tentando reaproximá-los. Punham-nos no mesmo ambiente. Ofereciam banquetes de tomates. Chegaram a colocar uma tartaruga de plástico no cercadinho, um terceiro elemento, para --quem sabe?-- apimentar a relação. Nada funcionou. Quando Bibi não ignorava Poldi por completo, o mordia. Um consultor externo aventou a hipótese de que Bibi houvesse tido um colapso nervoso (que original: Torwald disse a mesma coisa sobre Nora, em 1879). Um check-up completo, contudo, atestou que não era por problemas de saúde que a centenária chordata andava tão pouco, perdoem-me, cordata.

Dois anos atrás, os malfadados cupidos de Klagenfurt penduraram o arco e flecha: construíram duas acomodações separadas. Mas, como 90 anos de relação não são assim um casinho à toa, uma janela de vidro foi instalada no meio da cerca do jardim. Toda vez que Bibi avista Poldi do lado de lá, porém, ela ergue o pescoço, abre a boca e sibila como uma serpente. 

Se eu pudesse dar um conselho a Poldi, diria para manter a cabeça fria: ainda tem chão, parceiro. Na Austrália, uma tartaruga de Galápagos chamada Harriet chegou aos 170 anos. Como escreveu Paulo Mendes Campos: "a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba". E se nada der certo, Poldi, bem: sempre haverá tomates.

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