1. No meio da primeira noite na casa nova, os Azambuja acordaram com barulhos vindos do sótão. "Parece um violão", disse dona Marli. "Desafinado", comentou seu Arlindo. Seguido pelos filhos, Arthur e Keyana, o casal foi até o sótão. Não havia ninguém ali, embora o violão continuasse. "É um fantasma", disse dona Marli. "É 'Starway to Heaven'", disse seu Arlindo. "Só a introdução", disse Arthur. "Muito mal tocada", disse Keyana.
Dona Marli e seu Arlindo, que já haviam passado pelo espiritismo, pelo candomblé e até presenciado umas luzes indo e vindo no céu, rapidinho, em certa noite de pescaria em Aquidauana, não se assustaram tanto com a presença do fantasma quanto com sua inaptidão para a música. Depois de algumas semanas com uma mãe de santo e um padre tentando, em vão, expulsar a alma penada, o casal optou pela política de redução de danos: contratou um professor de violão.
Faz dois meses que o professor leciona no sótão, às terças e quintas, das duas às três da matina: o fantasma já tá tocando "Wish You Were Here", do Pink Floyd, "Redemption Song", do Bob Marley e anteontem, pela primeira vez, pouco antes da aurora, arriscou uma composição própria. "É um sertanejo", constatou Arthur. "Universitário", apontou Keyana. Dona Marli e seu Arlindo pensam em lançar um canal no Spotify só com músicas psicogravadas, o "Fantasmejo". Ou "Espiritejo". Ou "Almejo". Estão em dúvida.
2. A pálpebra começou a palpitar no meio de uma reunião. No começo, João Marcelo não deu muita bola. Já havia tido isso antes: a pálpebra, a têmpora ou o tríceps tremelicavam durante um tempo, depois paravam. Dessa vez, porém, não parou. Continuou palpitando tarde afora, palpitou quando chegou em casa e ainda palpitava, na cama, quando adormeceu.
Dois dias depois, viu no rosto do médico que o examinava um espasmo de assombro. João Marcelo pensou no pior. Devia ser uma doença raríssima. Fatal.
O médico apressou-se em pegar um papel e uma caneta e sem tirar a mão esquerda da pálpebra do João Marcelo, passou a escrever com a direita, freneticamente. Depois de alguns minutos, largou a pálpebra e a caneta.
"O que que é, doutor?". "É Morse." "Oi?". "Na infância eu fui escoteiro. Aprendi a dar nós, a fazer fogo, a beber água de cipó e aprendi também código Morse. Nunca vi isso, mas as suas palpitações são uma mensagem. Em Morse." Dessa vez foi João Marcelo quem assombrou-se. "E o que diz a mensagem?". "É uma receita. De bolo de cenoura. Sem glúten. Você é alérgico a glúten?". "Não." "Interessante." "Que que eu faço, doutor?". "Bom, como médico, difícil dizer. Mas, se eu fosse você, começaria fazendo o bolo."
3. A Combustão Humana Espontânea (CHE) é um fenômeno bem documentado, havendo relatos tão antigos quanto o de Paul Rolli, em 1746, na publicação "Philosophical Transactions of the Royal Society".
O caso da dra. Almerinda Sabugosa, PhD em física quântica e moradora do Cambuci, no entanto, é inédito. Ela não chega à ignição, apenas solta fumaça pelos poros. Muita fumaça.
Na última quinta, 250 pessoas tiveram que evacuar o Tuca. O odor é característico. "Parece meu Voyage a álcool, nos anos 80, esquentando o motor", disse um coronel do Corpo de Bombeiros.
Nos últimos anos, dra. Almerinda tem se dedicado a projetar um sombreiro com exaustor, mas ainda não encontrou nenhuma empresa interessada em investir na fabricação. Até onde se sabe, dra. Almerinda é o único caso na história de Combustão Humana Espontânea que dá chabu.
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