Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Contra ou a favor do incesto trans?

Depois das fake news, vieram os fake colunistas

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Após a solidificação das fake news, era natural que viessem os fake colunistas. Para que ter uma pessoa real, com uma história de vida e opiniões reais, que podiam ou não interessar aos leitores, se já era possível criar textos milimetricamente pensados para cada público? Para que contar com a sorte se dava pra auferir, pelo histórico de cada consumidor de notícias, pelos movimentos de pupila e dados biométricos captados via aplicativos extra e intracorpóreos, quais parágrafos, quais frases, quais palavras, exatamente, eram responsáveis pelas maiores contrações faciais, descargas de adrenalina, serotonina, dopamina? 

Ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Antes da metade do século, a maioria das colunas que ricocheteavam pelas telas mundo afora já era criada por inteligência artificial. Humanos ainda estavam envolvidos no processo, dando um acabamento ao texto, checando se uma ou outra ideia não poderia ser ilegal, mas os argumentos vinham prontos e encadeados logicamente pelos algoritmos. 

A fórmula era simples —e, verdade seja dita, já vinha sendo usada a rodo pelos colunistas “orgânicos” desde fins do século 20. Bastava dar um ar de originalidade aos velhos preconceitos dos leitores. Hypar o ódio. Pegar o chorume da frustração e do ressentimento, batê-lo com algumas pedras de sofismo e servi-lo como se fosse um coquetel bacanudo.

“Sexo é para perdedores”: eis o título da coluna da CEO antifeminista de uma incubadora de start-ups que bombou em 2029. A colunista —jovem, bonita, bem-sucedida e inexistente— advogava colocar toda a energia no trabalho em vez de desperdiçá-la com as antiquadas dispersões carnais. Pregando a “sublimação produtiva”, acabou lançando diversos livros de autoajuda e oferecendo online cursos de “Celibonus”, o “celibato de resultados”. Quanta gente que só usava a cama para se recuperar da exaustão após horas de trabalhos cretinos e dar like em foto de gato não acreditou que estava na crista da onda?

“Por que não matar todos os miseráveis?”, perguntou um suposto filósofo ultrautilitarista, em 2031. Se a vida dos indigentes era de sofrimento extremo, argumentava o robô articulista, o “cancelamento” dessa população deveria ser visto como uma espécie de eutanásia coletiva. As campanhas pelo extermínio, que pipocaram pelo mundo, apresentavam-se “contra o sofrimento” e “pela paz”. Quem se opunha a matar os pobres foi tachado de “pró-miséria”. Tudo algoritmo. (Os humanos, neste caso, viram a ilegalidade do artigo, mas apostaram que a possibilidade de sucesso compensava os honorários dos advogados: estavam certos).

Um serial-killer vegetariano, autoproclamado “ecojusticeiro”, publicava mensalmente libelos contra a criação de bois, frangos, porcos e peixes —de vez em quando revelava detalhes dos “justiçamentos” de fazendeiros. Fazia grande sucesso entre jovens anarcoveganos do Capão Redondo e senhoras classe AAAA cristãs dos Jardins.

Em 2032 o Brasil cindiu em torno da coluna diária de Mia, uma garota trans de 21 anos que relatava a luta para que o Estado reconhecesse sua relação amorosa com a própria mãe. A esquerda, de um lado, pedia mudança nas leis. A direita, do outro, exigia pena de morte para as duas mulheres. 

A coluna, descobriu-se depois, era escrita por robôs a serviço da Igreja Universal do Reino de Deus, com o intuito de influenciar as eleições legislativas. Funcionou e naquele ano a bancada evangélica finalmente obteve maioria na Câmara. A toque de caixa, aprovou-se o “cancelamento” dos miseráveis. Alguns avatares progressistas ainda traziam os dizeres “#somostodosmia”.

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