Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata

Sincerão, Rodolfo

Esses dezoito minutos no Uber são o meu recreio

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

— Beijo na Nilze, Rodolfo, até!
— Até! Cê vai como?
— Tô chamando um Uber, aqui.
— Imagina, te dou uma carona.
— Não precisa, ó, dá R$ 6,80, só/
— Na na na na na, é meu caminho/
— Rodolfo, mesmo, eu/
— Faço questão!
— Mas/
— Te deixo em casa! Vai! 
Entra aí!
Silêncio.

Na ilustração, as mãos de uma pessoa sentada estão segurando um celular
Adams Carvalho/Folhapress


— Não me leva a mal, tá, Rodolfo? É que se eu pegar um Uber eu ouço um podcast e em dez minutos sei tudo sobre a era Vargas ou um vulcão na Islândia ou a origem das mitocôndrias, ou então eu fico escarafunchando o Twitter, o Insta, o FB, vejo a Isis Valverde fazendo ioga e o Tim Burton brincando com um iguana e dou like em foto de filho de ex-colega da quinta série que eu não vejo faz trinta anos e isso me relaxa, Rodolfo, é tipo um crochê, um jogo de paciência, uma meditação. Esse Uber é basicamente o único momento do dia que eu tenho pra mim, Rodolfo. Você quer me roubar esse momento, Rodolfo? No trabalho é um monte de gente me fazendo pergunta e cobrando prazo e querendo me passar a perna e aí eu chego em casa e tem que dar jantar pras crianças e a Patrícia chora porque queria macarrão e eu falo que hoje é franguinho e ela fala que não vai comer franguinho e depois tem que dar banho nas crianças e passar a pomada no Diogo e o Diogo chora porque a pomada é melada e eu explico que tem que passar pomada melada senão não cura a alergia e aí eu ponho eles pra dormir e eles querem ler “Onde Está Wally” e depois de tudo o que eu já fiz eu ainda tenho que achar a porra do Wally e a porra da Wendy e o idiota do Mago Barba Branca e eu nunca acho nada, eu sou péssimo de Wally e aí eu desisto e deito na cama e a minha mulher reclama que eu não pendurei as estantes e não deixo chamar o zelador e “qual-é-o-problema-de-pedir-pro-seu-Valdir-caramba?!”. E aí eu penso no Uber, Rodolfo... Eu penso nesses dezoito minutos meus, só meus. É tipo o Éden, Rodolfo. Eu torço até pra engarrafar. Torço pra cair uma árvore na Rebouças e esses dezoito minutos virarem quarenta e três e eu vou ouvir um podcast de 101 minutos sobre como os esquimós fazem cocô e vou dar like até em foto do periquito do neto do primo da minha ex-namorada há três encarnações. A minha vida é uma desgraça, Rodolfo. A Mari substituiu o sexo pelo pilates —ou será pelo professor de pilates? Eu engordei e fiquei careca. Às vezes eu acho que devia ter prestado música. Eu levava jeito pro oboé. As estantes estão desmontadas num canto do quarto desde 2011. O Uber é uma folga da minha vida. É um percurso entre uma desgraça e outra. É o meu recreio. Agora, se você me der carona, eu vou continuar na minha vida e a gente vai ter que conversar e a gente não tem papo, a gente nunca teve papo, sempre que eu te encontro é chatíssimo, é mais difícil encontrar um assunto com você do que achar o Wally, eu tenho mais trabalho conversando com você do que eu tenho no meu trabalho, eu preferia passar pomada em doze Diogos e convencer vinte e cinco Patrícias a comer salada de alfafa do que pegar essa carona com você, Rodolfo, será que você não entende, Rodolfo? Pelo amor de Deus, Rodolfo! Quer fazer um favor, Rodolfo? Então não me dá carona, Rodolfo! Me deixa pegar esse Uber, Rodolfo! Eu nunca te pedi nada, 
Rodolfo! Deixa, Rodolfo?

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.