Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Jogo da velha tebetê

Tem dias em que é melhor lembrar de qualquer motor fundido em 1987

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Toda quinta-feira eu entro no Instagram e estranho: tanto a Beyoncé quanto o Vitão, meu primo de Jundiaí, parecem mais jovens. Ao contrário das fotos, que parecem meio velhas. E este Escort XR3 conversível vermelho, tão bem conservado, despontando detrás da calça semi-bag do Vitão? 

Em algum momento entre o vermelho do carro e o amarelo da foto me dou conta de que é #TBT e tá todo mundo postando imagem antiga —para o bem do Vitão, que não caminha mais por Jundiaí metido em calças semibag. 

Eu gosto de #TBT. Gosto do sorriso fácil que a nostalgia traz, as lembranças adocicadas pelo filtro caramelo do Instagram mnemônico. “Olha só como o Thiago era cabeludo!”. “Olha as meninas, que bronzeadas!”. “Nossa, Réveillon de 1994, 11 em cada quarto, acabou a luz, a gente tomava Kaiser quente e era feliz!”.

Na ilustração, três crianças estão sentadas na lateral de um Fusca. As três estão de pernas cruzadas, duas de camisa, bermuda e chinelo; uma de vestido
Adams Carvalho/Folhapress

Sei que a nostalgia não goza de boa reputação. Ela é vista como uma espécie de novela das seis dos sentimentos. Cheia de artifícios baixos para edulcorar a realidade. No #TBT da memória, uma época conturbada que vivemos como a “Cavalgada das Valquírias”, do Wagner, hoje soa como “Borbulhas de Amor”, do Fagner.

Diametralmente opostos à nostalgia estão o divã do analista, o filme “Festa de Família”, o festival É Tudo Verdade. Longe de mim desdenhar das profundezas da psicanálise, do cinema nórdico, da busca documental pela essência dos objetos e dos sujeitos, mas às vezes a gente precisa é cantarolar “Quem dera ser um peixe/Para em teu límpido aquário mergulhar/Fazer borbulhas de amor pra te encantar/Passar a noite em claro/Dentro de ti”.

Outro dia, parado no trânsito, me peguei cantarolando umas memórias de infância. Lembrei que antigamente, quando eu era pequeno, os carros quebravam. A toda hora. Morriam e “afogavam” no meio da Rebouças. O motorista saía empurrando com uma mão na janela e outra no volante. Tinha sempre um cidadão solidário que, dez metros atrás, em outra pista, ligava o pisca-alerta, puxava o freio de mão e vinha correndo ajudar. Um pipoqueiro se juntava, empurrando, “Engata a segunda, liga na segunda!”. Ninguém buzinava na Rebouças da minha memória.

Às vezes, porém, o carro não pegava no tranco. Era preciso encostá-lo na calçada ou no acostamento. Abria-se o capô e uma confraria de palpiteiros logo se formava, como na pintura “Lição de anatomia”, do Rembrandt: todos observando com curiosidade mórbida as entranhas do automóvel. Nunca vi alguém chegar perto de um diagnóstico durante aquelas anamneses coletivas, mas todos se irmanavam palpitando sobre “a correia”, “a ventoinha” ou “a pipeta do carburador”. Um carro quebrado era uma mesa de bar, um bar era uma instituição e as instituições eram respeitadas. Mentira. #TBT fofo da memória. O mundo provavelmente era pior do que é hoje e pra piorar os carros quebravam e tomávamos Kaiser quente. 

Kaiser quente? Que que eu tô falando? Era para eu escrever sobre armas. Nesta segunda-feira o governo baixou o oitavo (!) decreto facilitando o acesso de projéteis metálicos ao corpo humano, sendo que em  nenhum lugar do mundo, como no Brasil, os projéteis metálicos entram mais frequentemente 
no corpo humano. 

Curiosamente, esses decretos que, segundo qualquer estudo sério, farão com que mais corpos humanos sejam atravessados por projéteis metálicos são tratados pelo governo como “a pauta da segurança”.

Era pra eu escrever sobre armas, mas eu precisava de um respiro. Tem dias em que lembrar de qualquer motor fundido em 1987 é melhor do que abrir o capô da nossa timeline. É a correia? A ventoinha? A pipeta do carburador? O que deu tão errado? “Canta, coração/Que esta alma necessita de ilusão/Sonha, coração/ Não te enchas de amargura”.

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