Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Quarentena on-line apocalíptica

Sete bilhões e setecentos milhões durante semanas, 24h por dia, nas redes

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Após mais de três meses em que boa parte da humanidade encarou o coronavírus com a mesma postura do meu avô, em 1992, diante dos primeiros celulares –“não vai pegar”–, a grande ficha cósmica finalmente caiu: habemus pandemia. Escolas e universidades provavelmente fecharão por um tempo, restaurantes ficarão vazios, as pessoas evitarão aglomerações e talvez, quem sabe, haja um momento em que será recomendado a todo o mundo o que já está sendo posto em prática na Itália: recolher-se ao antisséptico aconchego do lar.

Ilustração de menino brincando em um balanço. Ele está descalço e vestindo camisa de manga longa e short.
Adams Carvalho/Folhapress

Eis aí, meus amigos, a ameaça mais grave que esta microscópica mamona assassina apresenta à civilização: sete bilhões e setecentos milhões de pessoas durante semanas, vinte e quatro horas por dia, nas redes sociais. Reflitam: se ao usarmos Face, Twitter, Whats-App e Instagram só nos intervalos do trabalho, da criação dos filhos, dos estudos, das tarefas domésticas e demais ocupações cotidianas já conseguimos produzir excrescências como Trump, a mamadeira de piroca, o Brexit, o terraplanismo, o “kit gay”, Bolsonaro, Golden Shower, youtubers mirins, “nazismo é de esquerda”, ombudsman de fantasia de carnaval, “Marielle é traficante”, o veio da Havan, o movimento antivacina, o gemidão do WhatsApp, só para citar uma parcela ínfima dos patógenos surgidos na Rede Mundial de Computadores, o que acontecerá quando nos dedicarmos full-time a chafurdar em nossas teletelas?

Nos anos 1960 e 1970 os americanos tinham pânico de que os russos jogassem toneladas de LSD nos reservatórios de água das cidades. Pois eu acho que Nova York inteira abraçando árvore no Central Park e acariciando as auras uns dos outros ao som de Frank Zappa é uma imagem bem sóbria diante do que será criado nesta quarentena on-line global. Nenhum áudio do Jatene, nenhum protocolo da OMS, nenhum “amigo do primo da minha cunhada que é médica lá no HC e disse que...” poderá prever o que virá daí.

A única esperança para que não saiamos, lá por maio, acreditando que os ruivos são ETs infiltrados entre nós, que a África é uma invenção das ONGs para roubar dinheiro, que cebola com geleia real cura câncer e que o núcleo da Terra é feito de creme de castanha de caju (a teoria do “Sonho-de-valsismo”) é todos os governos, junto com as Big Techs, cancelarem a internet durante a quarentena.

Nos primeiros dias vai ser difícil aguentar os sintomas da abstinência. Os mais ansiosos podem até imprimir e mascar algumas fake news, ou copiar uns tuítes nuns Emplastos Salonpas e colar na barriga. Depois de uma semana, porém, as pessoas irão se acostumando e aí, quem sabe, comecem a recuperar hábitos do século passado, há muito esquecidos.

Por exemplo: conversar umas com as outras. Ler livros. Informar-se através de jornais e demais fontes confiáveis. Jogar War. Brigar por causa de tratados descumpridos no War. Fazer as pazes. Jogar Stop. Brigar por causa do “pequi” na “fruta com P” –uns afirmando que pequi é fruta, outros afirmando que é legume. Fazer as pazes. Lembrar como era bom brigar por essas razões e fazer as pazes, cara a cara. Talvez, então, acordemos desse pesadelo zumbi.

Caso, contudo, fiquemos trancafiados e divulgando fake news, só restará um remédio: acionarmos um “circuit breaker” global. Pôr todo mundo pra dormir e só nos acordar quando tivermos descansado o suficiente para concordar que a Terra é redonda, vacina não “dá” autismo e quem trama contra as instituições democráticas não é um “mito”, “zueiro”, “espontâneo”, é um criminoso que deve ser imediatamente afastado do poder.

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