Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Cães de aluguel

É cada vez mais difícil viver sustentando a postura herética de não gostar de cachorros

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Leio por aí que o número de bichos de estimação ultrapassou o de crianças nos lares brasileiros. O dado me deixa meio apavorado —embora não surpreso. Entre um filho e um quadrúpede, o patrício fica com o último. E bota sapatinhos e roupinha de crochê no último. E dá vinho canino para o último. E batiza o último com o nome de Carlos Eduardo e com Carlos Eduardo só conversa em inglês. "Sit!". "Jump!". "Catch the ball!". "Good job, Carlos Eduardo!".

Perto da minha casa, nos jurássicos anos 1990, havia duas videolocadoras. A HM (melhor de São Paulo, depois da 2001 Vídeo) e uma Blockbuster. Hoje, ambas são petshops. Uma delas, 24 horas. Quem precisa comprar uma coleira antipulgas ou comida pra gato às 2h da manhã? Pelo jeito, muita gente, pois o ponto em que a Blockbuster ficou por um tempo era uma caveira de burro, nenhum estabelecimento se estabelecia ali por muito tempo —era um desestabelecimento contínuo—, mas o petshop vai de vento em popa. (Curiosamente, com as mesmas cores da locadora, azul e amarelo).

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 15 de Abril de 2023, mostra o desenho em close no rosto de um cachorro com olhos de brinquedo
Adams Carvalho

Não consigo deixar de interpretar a troca de Fellini por Whiskas como um sinal dos tempos. (Ou, deveria dizer, "final" dos tempos?). Não me leve a mal. Bem, é tarde, sei que já está me levando. É cada vez mais difícil viver sustentando a postura herética de não gostar de cachorros.

Antigamente, se você entrasse numa casa e um dogue alemão te saudasse metendo duas patas enlameadas no seu peito, limpando o ranho do focinho na sua gola e lambendo seu cangote, o dono do bicho ficava constrangido, dava uma bronca no cachorro, prendia-o em algum lugar.

Hoje, diante da minha cara de horror, devolvem-me um olhar ainda mais apavorado: "Você não gosta de cachorro?! I’m sorry, Carlos Eduardo!".

Corrijo-me. Não é que eu não goste de cachorro. Como já escrevi em outra crônica: eu gosto, acho-os bonitinhos, divertidos e amorosos, só tenho cá para mim que a troca de fluidos, entre ou intraespécies, deve ser sempre previamente negociada e consentida por ambas as partes. #meucorpominhasregras, #nãoénão.

Veja, sou grande fã do Caetano Veloso e da Maria Bethânia, mas se eles, sem meu consentimento, assoassem o nariz na minha gola e lambessem o meu cangote, eu ficaria tão incomodado quanto com o hipotético dogue alemão. (E olha que, ao contrário do hipotético dogue alemão, Caetano compôs e Bethânia canta algumas das músicas mais bonitas que eu conheço. Mesmo assim a narigada e a lambeção seriam, para dizer o mínimo, impróprias).

Falei ali em cima em sinal dos tempos, mas acabei me desviando após o assédio sexual de um dogue alemão. Voltemos: acho sintomático que tenhamos trocado as películas pelos peludos. Filmes são uma investigação. Nos tiram do lugar. Nos fazem pensar, por uma hora e meia, com a cabeça de um mafioso italiano, um espião russo, um fantasma, um peixe viúvo à procura do filho. A gente questiona as nossas crenças e desconfia das nossas certezas.

Cachorros são o contrário. Um espelho de Narciso a abanar o rabinho, gostam de você sem nenhum mérito seu. São como saquinhos de likes, joinhas e corações para toda e qualquer ação sua. São uma rede social em que não existe trollagem e você é o Felipe Neto, o Messi, a Beyoncé.

Sempre lembro a história de um general romano: toda vez que conquistava uma cidade e punha-se a admirá-la do alto de uma montanha, chegava um subalterno e repetia: "Não te esqueças, general, tu és velho, calvo, baixo e gordo". Não deixava, assim, ser levado pela vaidade. Vi isso em algum filme, não foi o Carlos Eduardo que me contou.

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